Por Edgar Jacobs
“Eu vou ser bastante simplório na análise jurídica, já que, aqui, eu acho que a nossa discussão é um pouco menos jurídica e até mais fática [...] Na pratica as decisões liminares, elas são igualmente simplórias, no sentido de dizer o seguinte: olha, avalie se pode ou não, ou se tem ou não a necessidade de abertura de um curso. Então, elas pedem para que os ministérios façam um escrivo e não determinam, de fato, a concessão ou o deferimento de um novo curso, o que é bastante diferente”.
Essas são as palavras usadas pelo antigo Advogado Geral da União em audiência pública no STF, realizada no ano passado, para discutir a necessidade de chamamentos públicos para abertura de cursos de Medicina.
Escrivar - ou “fazer um escrivo”, como citado pelo AGU – é sinônimo de “joeirar”, que em linguagem simples significa “separar o joio do trigo”. É essa a tarefa principal do MEC e este deveria ser o trabalho executado a partir dos processos judiciais propostos para garantir o protocolo dos pedidos de autorização de cursos.
A fala do AGU, em 2022, foi importante para confirmar que a disputa judicial não trata da dispensa de avaliação de cursos de Medicina ou da redução de sua qualidade. O tema é o fechamento do mercado por meio de barreiras regulatórias. Inicialmente, a barreira foi a interpretação da União contra a abertura de cursos de Medicina pelo procedimento normal de regulação; depois foi uma portaria absurda de 2018, que suspendeu por 5 anos o chamamento público do Programa Mais Médicos, única via que restava para cursos novos cursos na área. A soma dessas duas barreiras agravou desigualdades, impediu o crescimento do número de médicos por habitantes e gerou um debate jurídico.
Diante daquele contexto, as Instituições de Ensino Superior iniciaram uma discussão formal sobre seu direito de dar início ao processo de autorização de cursos de Medicina, daí surgiram as “liminares simplórias” mencionadas acima. Mas esse conjunto de decisões, simples de cumprir, parece estar sendo travado pelo Ministério da Educação. Afinal, existem dezenas processos em fase de parecer final e mais de 100 na fase de avaliação tramitando em um ritmo muito lento, ou mesmo nem tramitando.
Anos atrás, quando ainda não tinha sido consagrado no Código de Processo Civil o princípio da cooperação, era comum dizer que a Administrador Público estava “sentado sobre o processo” ou o tinha “engavetado”. Mas hoje a expectativa é diferente; o Art. 6º, do CPC, diz que "Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva" e, cada vez mais, as normas penais têm sido usadas para combater a desobediência ou a resistência ao cumprimento de ordens judiciais.
Esta resistência é um problema jurídico relevante e gera prejuízos para a sociedade. O que se espera da Administração Pública é respeito, isenção e neutralidade em face das decisões do Poder Judiciário. E quando isso não ocorre, há uma sensação de desequilíbrio e frustração por parte de quem recorre à Justiça.
Prova disso é o caso recente e notório de uma Instituição de Ensino que trataremos apenas pelo nome de “Demandante”. A Demandante, após reiterado retardamento dos procedimentos administrativos pela União (conforme narrado em seu processo, não sigiloso), buscou e obteve decisão muito contundente, que deveria ter levado à análise imediata de seus processos regulatórios e, caso cumpridos os requisitos legais, à emissão de Portaria de Autorização de cursos de Medicina.
A União foi intimada da decisão e deveria cumpri-la, porém, depois de vários dias de omissão, a Demandante decidiu abrir os editais de processo seletivo sem o ato formal do MEC. Isso gerou incerteza no mercado, além de disposição de várias outras Instituições de Ensino em fazer o mesmo.
Foi preciso que o Judiciário interviesse mais uma vez e evitasse que a abertura dos cursos irregulares. Na decisão, do TRF da 1ª Região, há uma clara demarcação dos limites das decisões judiciais sobre a abertura de protocolo para cursos de Medicina:
“...tenho convicção firmada no sentido de que o recebimento e processamento de pleitos dessa natureza [...] insere-se no exercício regular do direito de petição, independentemente da exigência de prévio chamamento público para essa finalidade [...] contudo, uma vez assegurado o exercício desse direito de petição, não cabe ao Poder Judiciário substituir-se aos agentes públicos competentes para o exame do preenchimento ou não dos requisitos normativos para o funcionamento do curso superior...”. (AI 1014429-81.2023.4.01.0000, Decisão do Desembargador Souza Prudente, proferida em 16 de maio de 2023)
Coibido o excesso na abertura dos cursos, a decisão também critica a atuação recalcitrante do MEC. Para os casos de descumprimento, o TRF lembra que é possível “...a fixação de prazo razoável para a sua apreciação, imposição de multa pecuniária ou até mesmo pela requisição de apuração da responsabilidade, nas esferas administrativa e criminal...”. Esse caso ilustra a correlação entre os eventuais excessos das instituições de ensino e do Poder Público.
Mas apesar dessa relação evidente, a conduta do MEC, além de corriqueira, é mais grave que a do Demandante. A Instituição de Ensino buscou respaldo de uma decisão judicial, enquanto o MEC as descumpre, de forma pouco transparente, usando chicanas. Além disso, existem princípios e regras impostos especificamente à Administração Pública.
Chicana, aliás, é uma boa palavra, cujos dois principais sentidos jurídicos permitem analisar o contexto das demandas sobre Medicina. Segundo o dicionário Michaelis, o termo pode significar tanto “Abuso dos recursos, expedientes e formalidades da justiça” quanto “Atrasos de andamento, bloqueios e outras dificuldades”. A defesa da União em juízo não abusou de recursos nem de expedientes formais. Na realidade, a fala do AGU em audiência pública e a atuação recente do novo Advogado Geral perante o STF demonstram o respeito dos Advogados da União pelo direito dos envolvidos. Porém, o MEC abusa de “atrasos de andamento, bloqueios e outras dificuldades” para impor sua opinião e descumprir, veladamente, as decisões judiciais.
Esse tipo de comportamento, que era tão tristemente comum no passado, hoje gera um sentimento de descrença em relação ao Estado de Direito e recrudesce o sentimento dos dois lados destas demandas judiciais.
Por outro lado, quando a União perceber que age no limite da lei, ou até além dele, para travar a abertura dos cursos de Medicina, será mais fácil buscar o entendimento. Um entendimento que poderia vir por meio de compromissos e acordos que diminuam a insegurança jurídica e cobrem, com rigor, a qualidade dos novos cursos.
Tudo mais, além desse rigoroso controle de qualidade dos cursos, é simplório.
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