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Ana Luiza Santos e Edgar Jacobs

O direito de matrícula de migrantes, refugiados e apátridas no sistema público de ensino

No Brasil, desde a Constituição de 1988, foi estabelecido como   dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.


Também em 1988 foi definido que o direito à educação estaria consagrado como um direito social.


Paralelamente a isto, perceba que o Brasil é signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança, promulgada pelo Decreto nº 99.710, de 1990, e reconhece, portanto, sem discriminação de qualquer tipo, inclusive de origem nacional, que toda criança tem direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento, bem como ao melhor padrão possível de saúde, devendo assegurar que ela receba proteção e assistência humanitária adequadas quando na condição de refugiada.


Direito público subjetivo e inalienável


Vale lembrar que no Brasil o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é um direito público subjetivo, o que quer dizer que, caso o Poder Público não o garanta ou não o faça de maneira regular, o cidadão tem a possibilidade de exigi-lo judicialmente.


A Constituição Federal garante a educação como um direito individual, como também um direito público difuso, cabendo ao Estado e à família exercê-lo, com colaboração da sociedade. No Art. 53 da Constituição, o pleno desenvolvimento do educando como pessoa está em primeiro lugar na hierarquia; em segundo lugar está o preparo para o exercício da cidadania; e, em terceiro lugar, a qualificação para o trabalho.


Outras leis regulamentam e complementam a lei do direito à Educação Infantil,   abrindo as portas da escola pública fundamental a todos os cidadãos brasileiros, pois nenhuma criança, jovem ou adulto pode deixar de estudar por falta de vaga. A exigibilidade do ensino obrigatório tem reforço na LDB/96


Repetindo, o Brasil é signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1990. Mas não só. O país tem participado ativamente da construção de princípios desenvolvidos com o apoio de normas e jurisprudência internacional de direitos humanos.


Hoje é pacífica a ideia de um direito à educação inalienável e para todos, incluindo, obviamente, migrantes, refugiados, apátridas e os que ainda solicitam refúgio.


A Resolução nº 1, de 13 de novembro de 2020


Em 2020, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou medida que assegura o direito de matrícula de crianças e adolescentes migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio nas redes públicas de educação básica brasileiras sem o requisito de documentação comprobatória de escolaridade anterior, nos termos do artigo 24, II, "c", da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (LDB), e sem discriminação em razão de nacionalidade ou condição migratória.


A matrícula, uma vez solicitada, deverá ser assegurada de imediato  na educação básica obrigatória, inclusive na modalidade de educação de jovens e adultos e, de acordo com a disponibilidade de vagas, em creches, e  sem qualquer mecanismo discriminatório.


De acordo com a Resolução do CNE, a falta de tradução juramentada de documentação comprobatória de escolaridade anterior, de documentação pessoal do país de origem, de Registro Nacional Migratório (RNM) ou Documento Provisório de Registro Nacional Migratório (DP-RNM); e a situação migratória irregular ou expiração dos prazos de validade dos documentos apresentados não podem impedir a matrícula.


Pelo contrário, o procedimento deverá ser facilitado, considerando-se a situação de vulnerabilidade.


Como é possível inexistir documentação escolar que comprove escolarização anterior, os estudantes estrangeiros na condição de migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio terão direito a processo de avaliação/classificação, permitindo-se a matrícula em qualquer ano, série, etapa ou outra forma de organização da Educação Básica, conforme o seu desenvolvimento e faixa etária.


Ponto interessante da norma é que o processo de avaliação/classificação deverá ser feito na língua materna do estudante, cabendo aos sistemas de ensino garantir esse atendimento.


Em se tratando de matrícula na etapa da educação infantil e no primeiro ano do ensino fundamental, será observada apenas a idade da criança. Já nos casos de matrícula a partir do segundo ano do ensino fundamental e no ensino médio, os sistemas de ensino deverão aplicar procedimentos de avaliação para verificar o grau de desenvolvimento do estudante e sua inserção no nível e ano escolares adequada.


Ou seja, a matrícula insere a criança ou adolescente imediatamente no sistema de ensino,  em nível e etapa de acordo com a idade, e os sistemas de ensino aplicarão os procedimentos de avaliação para verificar o grau de desenvolvimento do estudante e sua adequada inserção na etapa escolar.


A classificação para inserção no nível e ano escolares adequados deverá considerar a idade e o grau de desenvolvimento do estudante, podendo ocorrer por:


  • automática equivalência, quando o estudante apresentar documentação do país de origem;

  • avaliações sistemáticas, no início e durante o processo de inserção nos anos escolares, considerada a idade do estudante;

  • reconhecimento de competências para efeitos de cumprimento de exigências curriculares do ensino médio, inclusive com relação à educação profissional técnica de nível médio; e

  • certificação de saberes, a partir de exames supletivos, do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) e ainda por outros exames, para fins de aferição e reconhecimento de conhecimentos e habilidades adquiridos por meios informais, nos termos da LDB.


A Resolução do CNE prevê a obrigação da instituição de ensino de avaliar inicialmente o grau de desenvolvimento do estudante e classifica-lo em nível e ano escolar no momento da matrícula e também de realizar a classificação definitiva até o final do ano letivo em que o estudante foi inserido na escola.


Estas avaliações, tanto a de equivalência quanto a de classificação, devem considerar a trajetória do estudante, sua língua e cultura, e favorecer o seu acolhimento.


Por fim, e também de suma importância, é o comando de que as escolas acolham os estudantes migrantes com base na não discriminação; na prevenção ao bullying, racismo e xenofobia; na  não segregação entre alunos brasileiros e não-brasileiros, mediante a formação de classes comuns; na capacitação de professores e funcionários sobre práticas de inclusão de alunos não-brasileiros; na  prática de atividades que valorizem a cultura dos alunos não-brasileiros; e na oferta de ensino de português como língua de acolhimento, visando a inserção social daqueles que detiverem pouco ou nenhum conhecimento da língua portuguesa.


Contextualização da Resolução e do posterior PL


Está claro que o direito à matrícula sobre o qual tratamos nesta ocasião está contemplado desde 1988, por vários instrumentos normativos.


Porém, como não havia uma norma específica até a publicação da Resolução, as instituições de ensino pelo país procediam das mais variadas formas ao se depararem com os casos concretos de estudantes em situação de migração, refúgio ou apatridia.


Muitas crianças e adolescentes não tiveram suas vagas garantidas por falta de tradução juramentada de documentação comprobatória de escolaridade anterior ou de documentação pessoal do país de origem, por exemplo.


Ou seja, algumas unidades escolares estavam descumprindo a legislação estadual e nacional e causaram entraves que barraram efetivamente o acesso à educação básica, colaborando para que inúmeras crianças e adolescentes fossem levadas para o trabalho infantil.


A propósito, o projeto Criança Livre de Trabalho Infantil encontrou, em um trabalho de 08 meses de duração em 2020, 72 crianças em situação de trabalho infantil ou em risco de trabalho infantil na cadeia têxtil, que tem em São Paulo seu principal polo nacional. Em sua imensa maioria eram crianças de famílias bolivianas que viviam em 12 distritos da capital paulista, em áreas que concentram oficinas de costura na cidade.


À época, o projeto mencionou o desafio quando da matrícula destas crianças, o que envolveu a presença de sua equipe nas escolas e nas instâncias de articulação com as secretarias municipal e estadual de educação.


A Resolução foi publicada para dar um basta nas ilegalidades transvestidas de lei.  


Projeto de Lei N.º 1.117, DE 2022


O Projeto de Lei da Deputada Dorinha Seabra Rezende pretende transformar os tópicos da Resolução do CNE em lei, ampliando a possibilidade de matrícula (ou inscrição em processos seletivos) dos educandos migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio em instituições de educação profissional e tecnológica ou de nível superior.


A justificação do Projeto é a de que, em resumo, apesar do amplo arcabouço normativo vigente que protege os estrangeiros em pauta, a efetividade de seu direito à educação sempre foi comprometida por uma série de obstáculos culturais e, sobretudo, burocráticos, como a exigência de documentos que os refugiados não teriam condições de acessar facilmente, como a certidão de nascimento.


A deputada fez a ressalva de que a Justiça, há alguns anos,  passou a considerar que o Registro Nacional do Estrangeiro substituísse a certidão, mas que a desinformação eventualmente faz com que se mantenha, indevidamente, essa exigência em algumas redes de ensino.


O texto do Projeto ainda  faz menção e elogia a Resolução do CNE, que pretendeu ajustar os problemas mencionados, mas pondera o caráter mais frágil desta espécie de norma regulamentar, o que justificaria que seu conteúdo fosse explicitado em lei.


O projeto já passou pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), ocasião em que recebeu parecer pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa.


Para finalizar, voltando à Resolução nº 01, de 13 de novembro de 2020, sua elaboração ocorreu após recomendação da Defensoria Pública da União, em 2018, por meio do Grupo de Trabalho Nacional “Migrações, Apatridia e Refúgio”. A DPU colaborou com a construção da regulamentação.


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