A notificação compulsória tornou-se obrigatória para os médicos, outros profissionais de saúde ou responsáveis pelos serviços públicos e privados de saúde em 1975, com a promulgação da Lei no 6.259. Naquela época a notificação obrigatória se referia a doenças que poderiam implicar medidas de isolamento ou quarentena, de acordo com o Regulamento Sanitário da época, e de doenças constantes de relação elaborada pelo próprio Ministério da Saúde.
Também em 1975 foi criado o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SNVE) e neste período a notificação compulsória ainda era limitada a uma pequena lista de doenças. Desde então, no decorrer das décadas, houve a construção de um novo modelo de vigilância, impactado posteriormente pelo surgimento do SUS em 1988. A evolução do Estado foi inegável neste sentido.
Pois bem: quando da promulgação do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03), determinou-se a notificação compulsória dos atos de violência praticados contra o idoso atendido em estabelecimentos de saúde públicos ou privados. Logo em seguida, a Lei nº 10.778/03 estabeleceu a notificação compulsória de caso de violência contra a mulher, nos mesmos moldes.
A partir de 2011 o termo “violência doméstica, sexual e/ou outras violências” passou a constar na Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças e outros agravos (Portaria MS/GM nº 104) e em 2014 a Portaria MS/GM nº 1.271 tornou imediata a notificação de tentativa de suicídio. Em suma, todas as violências passaram a fazer parte da Lista Nacional das Doenças e Agravos de Notificação Compulsória, sendo a notificação dos casos suspeitos e confirmados de violência obrigatória/compulsória a todos os profissionais de saúde de instituições públicas ou privadas.
Profissionais de outros setores, como educação, assistência social, saúde indígena, conselhos tutelares, centros especializados de atendimento à mulher, entre outros, de acordo com a lei, também poderiam realizar a notificação.
Em 2016 a obrigatoriedade de comunicação das doenças, da violência doméstica e/ou sexual e da tentativa de suicídio foi estendida aos estabelecimentos públicos ou privados educacionais, de cuidado coletivo e instituições de pesquisa (Portaria Nº 204 de 17 de fevereiro de 2016), bem como serviços da rede de assistência social e conselhos tutelares.
Art. 3 º § 2º A comunicação de doença, agravo ou evento de saúde pública de notificação compulsória à autoridade de saúde competente também será realizada pelos responsáveis por estabelecimentos públicos ou privados educacionais, de cuidado coletivo, além de serviços de hemoterapia, unidades laboratoriais e instituições de pesquisa. (Portaria n.204/16)
Por ora temos o regramento da Lei 13.819/19, que instituiu a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, determinou sua implementação pelos entes federativos e alterou a Lei 9.656/98, que dispõe sobre os Planos e seguros privados de assistência à saúde. A lei de 98 foi alterada para incluir a obrigatoriedade da inclusão de atendimento à violência autoprovocada e às tentativas de suicídio na oferta dos serviços dos convênios de saúde.
A Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio é uma estratégia permanente do poder público para a prevenção dos eventos e para o tratamento dos condicionantes a eles associados. Tem como foco, por óbvio, a violência autoprovocada, o que seja: o suicídio consumado, a tentativa de suicídio e o ato de automutilação, com ou sem ideação suicida.
Seus objetivos são:
promover a saúde mental;
prevenir a violência autoprovocada;
controlar os fatores determinantes e condicionantes da saúde mental;
garantir o acesso à atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, especialmente daquelas com histórico de ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio;
abordar adequadamente os familiares e as pessoas próximas das vítimas de suicídio e garantir-lhes assistência psicossocial;
informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância e a relevância das lesões autoprovocadas como problemas de saúde pública passíveis de prevenção;
promover a articulação intersetorial para a prevenção do suicídio, envolvendo entidades de saúde, educação, comunicação, imprensa, polícia, entre outras;
promover a notificação de eventos, o desenvolvimento e o aprimoramento de métodos de coleta e análise de dados sobre automutilações, tentativas de suicídio e suicídios consumados, envolvendo os entes do Estado e os estabelecimentos de saúde e de medicina legal, para subsidiar a formulação de políticas e tomadas de decisão;
promover a educação permanente de gestores e de profissionais de saúde em todos os níveis de atenção quanto ao sofrimento psíquico e às lesões autoprovocadas.
Uma inovação da Lei 13.819/19 é a criação de um serviço telefônico para recebimento de ligações destinado ao atendimento gratuito e sigiloso de pessoas em sofrimento psíquico, municiado de atendentes qualificados.
Quem é obrigado a notificar a violência autoprovocada?
Os casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada são de notificação compulsória pelos estabelecimentos de saúde públicos e privados às autoridades sanitárias e pelos estabelecimentos de ensino públicos e privados ao conselho tutelar.
Ou seja:
as autoridades sanitárias receberão as notificações de casos de violência autoprovocada que forem detectadas pelos estabelecimentos de saúde públicos e privados;
o conselho tutelar receberá as notificações de violência autoprovocada que forem percebidas no ambiente escolar, seja público ou privado.
Quando falamos de Conselho Tutelar, devemos nos ater à sua função, que é a de receber denúncias, comunicações e reclamações envolvendo violação dos direitos da criança e do adolescente. Os Conselheiros Tutelares aplicam medidas de proteção à criança ou adolescente quando seus direitos forem violados “por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; e, em razão de sua própria conduta”.
Como os Conselheiros Tutelares muitas vezes são os primeiros a atender crianças ou adolescentes com comportamento suicida, envolvendo automutilação, risco de suicídio ou suicídio consumado, sua notificação compulsória é de grande valia.
A análise da letra da lei nos informa, portanto, que, nos casos que envolverem criança ou adolescente, o conselho tutelar deverá receber a notificação, afastando a compulsoriedade de comunicação por parte dos estabelecimentos escolares públicos ou privados quando o estudante for maior de idade.
Frisando que os profissionais da educação, sejam da rede pública ou particular, podem realizar a notificação e talvez sejam fortemente recomendados a tal pela administração escolar quando verificarem ou suspeitarem de violência autoprovocada por parte de seus alunos maiores de 18 (dezoito) anos, mas não existe obrigação sujeita a penalidade.
Neste aspecto, bom frisar que o profissional de saúde obrigado a fazer as notificações estabelecidas por lei e que se omite pode cometer infração sanitária e até mesmo ser indiciado por crime contra a saúde pública. Não há previsão de crime que atinja os profissionais da educação compelidos à notificação, mas é preciso delimitar exatamente para quem, por lei, foi dirigida a compulsoriedade.
Como já nos referimos, profissionais de diversos setores podem fazer a comunicação à respectiva autoridade competente (profissionais da assistência social, da saúde indígena, de centros especializados de atendimento à mulher etc), de forma que as instituições de ensino, tanto públicas quanto privadas, têm o direito de avisar a ocorrência de violência autoprovocada praticada por seus funcionários, seu pessoal técnico-administrativo e seus alunos maiores, mas não a obrigação.
A notificação não é uma denúncia policial, mas um elemento importante na atenção integral às pessoas vítimas de violência. Seus objetivos são:
conhecer a magnitude e a gravidade das violências, retirando os casos da invisibilidade;
subsidiar as políticas públicas para a atenção, a prevenção de violências, a promoção da saúde e a cultura da paz;
intervir nos cuidados em saúde, promovendo atenção integral às pessoas em situação de violência e prevenindo a violência de repetição;
proteger e garantir direitos por meio da articulação das redes de atenção e proteção.
O Guia Intersetorial de 2019 de prevenção do comportamento suicida em crianças e adolescentes é bastante completo e útil às escolas/espaços de educação, protagonistas na vida de crianças e adolescentes.
Enfim, hoje, para fins de notificação, deve-se noticiar: caso suspeito ou confirmado de violência doméstica/intrafamiliar, sexual, autoprovocada, tráfico de pessoas, trabalho escravo, trabalho infantil, tortura, intervenção legal e violências homofóbicas contra mulheres e homens em todas as idades.
No caso de violência fora da família, serão objetos de notificação as violências contra crianças, adolescentes, mulheres, pessoas idosas, pessoas com deficiência, indígenas e população LGBT, independentemente do tipo e da natureza/forma de violência.
Todos os casos mencionados são notificados, exceto os que envolvam violência extrafamiliar cujas vítimas sejam adultos (20 a 59 anos) do sexo masculino. Essa modalidade de violência (brigas entre gangues, brigas nos estádios de futebol, brigas entre vizinhos etc) pode ser monitorada por meio de outros sistemas de informação e através do componente do VIVA Sentinela.
Existe hoje uma base de dados de agravos de notificação, o SINAN, alimentado principalmente pela notificação e investigação de casos de doenças e agravos que constam da lista nacional de doenças de notificação compulsória, pelos municípios, estados e o DF. Além da lista nacional, estados e municípios podem criar listas incluindo outros problemas de saúde importantes em sua região.
O Decreto n.10.225/20
A norma mais recente sobre o tema é o Decreto 10.225/20, que instituiu o Comitê Gestor da Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, órgão de assessoramento destinado a implementar a política de prevenção à automutilação e suicídio, conforme previsto na lei 13.819/19, bem como a promover o fortalecimento de estratégias permanentes de educação e saúde.
O Comitê deverá:
articular, planejar e propor estratégias de implementação da Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio;
monitorar a implementação e a execução das políticas afins;
propor ações de prevenção sobre a situação epidemiológica da automutilação e do suicídio;
contribuir para o aprimoramento da informação e do conhecimento do fenômeno da automutilação, da tentativa e do suicídio consumado, incluídos causas, determinantes sociais e fatores de risco;
propor e disseminar, de forma integrada, campanhas de comunicação social para prevenção da autoviolência.
A partir de agora órgãos da administração pública federal responsáveis pela Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio poderão firmar convênios, acordos e parcerias com organizações da sociedade civil e instituições privadas para efetivação da Política, observadas a lei pertinente e a disponibilidade orçamentária.
Ao Ministério da Educação caberá, de acordo com o Decreto:
propor fluxos, normas e diretrizes para o registro de notificações compulsórias sobre automutilação e tentativa de suicídio provenientes das instituições de ensino públicas e privadas para serem encaminhados ao conselho tutelar;
divulgar amplamente as ações de prevenção da automutilação e do suicídio nas instituições de ensino públicas e privadas de maneira a disseminar informações que possibilitem a compreensão da ocorrência desses fenômenos para além dos fatores de ordem individual; e
promover a capacitação dos gestores, dos professores e da comunidade escolar em relação à prevenção da automutilação e suicídio.
A obrigatoriedade de notificação de violência autoprovocada para responsáveis por instituições de ensino públicas e privadas é repetida pelo Decreto, assim como o comando de que o destinatário seja o conselho tutelar, confirmando o afastamento da compulsoriedade quando o estudante for maior de idade.
Atualmente a autoviolência está inserida nas políticas de saúde de inúmeros países: todos Estados Membros da Organização Mundial da Saúde (OMS), por exemplo, são vinculados ao Regulamento Sanitário Internacional (RSI), instrumento jurídico internacional cujo objetivo é ajudar a comunidade internacional a prevenir e responder a graves riscos de saúde.
Com base na experiência da OMS em vigilância global de doenças, alerta e resposta, o RSI define os direitos e obrigações dos países de relatar eventos de saúde pública e estabelecer procedimentos. Tendo em vista que o comportamento suicida é um grave problema mundial de saúde pública, todos os passos no sentido de comunicar e alertar as autoridades do sofrimento individual é bem-vindo. Em um primeiro momento para acolher quem necessita e, em um segundo momento, fomentar a melhora das políticas públicas em saúde da comunidade.
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