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Ana Luiza Santos e Edgar Jacobs

O videomonitoramento dentro das salas de aula

Quando falamos em monitoramento de pessoas via câmeras de vídeo um leque de possibilidades e situações vêm à mente, sendo a mais corriqueira a vigia ostensiva em vias públicas e áreas particulares comuns.


O assunto também traz à tona o monitoramento clandestino, uma vez que as câmeras estão por todos os lados, muitas vezes escondidas, e também porque, por vezes, temos razões para suspeitar de vigilância remota por meio de nossas câmeras de celulares, computadores, tablets e, por que não, pelo uso de drones.


Em relação ao uso de câmeras de segurança em locais públicos e privados de uso comum, nosso foco no momento, não há legislação federal que regulamente a questão. Dessa forma, o que deve ser levado em consideração é a ética e o respeito aos direitos de privacidade garantidos pela Constituição.


Alguns municípios já aprovaram leis que estabelecem políticas de videomonitoramento em vias públicas, prédios utilizados pela administração pública (como escolas, postos de saúde), praças, parques públicos e também regulamentaram a implantação do sistema por particulares que captam imagens, estabilizadas e focadas, do passeio ou de vias e áreas públicas.


Um exemplo é a cidade de Curitiba: a lei nº 15.405, de abril de 2019 foi sancionada com o propósito de normatizar o monitoramento por imagens das vias públicas, compreendendo logradouros, áreas, ambientes, veículos, equipamentos e eventos públicos no Município. Várias outras cidades, espalhadas por todo o país, já editaram leis a respeito.


Fato que, tanto em Curitiba como nos outros municípios, a ideia do videomonitoramento possui basicamente as mesmas diretrizes:


  • gestão e processamento de imagens, para controlar a rotina da cidade e orientar operações em situações de crise;

  • prevenção a contravenções e ilícitos penais ou administrativos;

  • comprovação da materialidade de eventuais contravenções e ilícitos penais ou administrativos, mediante autorização ou requisição legal;

  • cooperação e integração com órgãos de segurança pública, de socorro e atendimento emergencial, com o Poder Judiciário e com os órgãos de trânsito e de transporte público;

  • e regulamentação das iniciativas particulares de videomonitoramento, cujas imagens seriam utilizadas em situações de interesse público.

O uso destas imagens, ainda que captadas de maneira legal, deve ser objeto de debate, vide a utilização dos dados para, por exemplo, reconhecimento facial. A tecnologia pode ser de grande utilidade, mas o que dizer se for usada para perseguir o cidadão? Na China, por exemplo, estão as 5 cidades mais vigiadas do mundo e o programa de reconhecimento facial do governo, apesar de propagandear "forjar um ambiente na opinião pública em que a confiança será valorizada", também serve para restringir acesso a áreas públicas de pessoas que se encaixam em certo perfil e histórico social.


A base de dados chinesa promete concentrar uma ampla variedade de informações sobre cada cidadão. Será possível, bem em breve, saber se uma pessoa paga seus impostos e multas em dia e se seus títulos acadêmicos são legítimos (o que, a propósito, seria até divertido no Brasil).


A China é sempre a referência, o paradigma, pois suas empresas são líderes em reconhecimento facial e algoritmos de monitoramento inteligente, mas a tecnologia flui em todos os cantos do planeta e o que era ficção na década de 1940, e magistralmente relatado por um dos melhores cronistas do século XX, já é realidade.


De qualquer forma, imagine se o governo proibir um indivíduo de usar o serviço de transporte público, por exemplo, por ele ter sido flagrado em passeatas, protestos ou ato que as autoridades desaprovem. O fato de o governo monitorar tudo, todo o tempo, recebendo informações das mais diversas e precisas dos cidadãos, pode ser um risco à liberdade individual, sempre lembrando que há um grupo de pessoas que passa por um escrutínio ainda mais pesado, dependendo da profissão que exercem. E no topo da lista estão os professores.


O que dizer, então, do videomonitoramento dentro das salas de aula?


Pois bem, uma decisão recente do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar a ação direta de inconstitucionalidade nº 2113734-65.2018.8.26.0000, abraçou a legalidade da instalação de câmeras também dentro das salas de aula, fundamentando-se no art. 7º da lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) para admitir que a escola possui autonomia administrativa e operacional para se organizar e que a decisão de instalar câmeras de monitoramento eletrônico decorre desta autonomia.


A escola, de acordo com a decisão, está obrigada apenas a assegurar em contrato, no ato da matrícula ou em documento posterior, a autorização dos pais para monitorar eletronicamente os seus filhos.


Este posicionamento do TJSP considera, em primeiro lugar, que o interior das salas de aula não é considerado local privado, mas de natureza pública, pois inserido dentro de prédio público, onde a coletividade usufrui de modo compartilhado com vistas ao desenvolvimento de atos de docência e educação.


Outro enfoque é que o monitoramento não implica em exibição automática e em tempo real das imagens coletadas, não havendo “exposição desmedida e gratuita da imagem das pessoas, mas apenas o armazenamento, cuja exibição será solicitada apenas em caso específico para se apurar evento certo que exija alguma investigação ou fiscalização”.


Na ação a Procuradoria Geral de Justiça posicionou-se a favor das câmeras de vídeo dentro das salas de aula, ressaltando que o uso indevido das imagens, caso extrapole o propósito da lei, pode violar o direito de imagem, gerando as indenizações pertinentes.


A censura prévia e a interferência na liberdade de ensinar e aprender também foram rejeitadas pelo Tribunal paulista. De acordo com a maioria dos julgadores, a atividade nos estabelecimentos públicos de ensino deve respeito ao regramento jurídico previsto na Constituição Federal e à legislação infraconstitucional que rege a matéria relativa à educação. Desta maneira, com ou sem monitoramento, a conduta de alunos e professores deve respeitar os princípios constitucionais e respeitar a legalidade, de forma que a simples captação das imagens não afronta a liberdade do ensino ou atinge a espontaneidade dos alunos.


O mote desta decisão é a relativização dos direitos e garantias fundamentais diante da necessidade de fiscalização e garantia da segurança de atividade pública de tamanha relevância.


Por outro lado, temos uma corrente que entende que a vigilância eletrônica introduz novas tecnologias, que, em grande medida, podem sim interferir no direito à privacidade e ao anonimato, resultando na exacerbação do controle social, na gravação das imagens, por tempo muitas vezes desconhecido e finalidades não evidenciados. Os defensores desta corrente fundamentam sua opinião no que dispõe a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, na Constituição Federal de 1988, e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Decisão neste sentido foi proferida nos autos de nº 0022036-73.2018.5.04.0000, do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, na qual se decidiu que a instalação de câmeras de vídeo em salas de aula ofende direitos fundamentais de professores e alunos, pois viola a intimidade e o direito de imagem, além de limitar a liberdade de cátedra e pensamento.


Neste caso específico, também decidiram que a escola promovia a vigilância do trabalho do professor, violando dispositivos não só da CF, mas da CLT (art. 483, 'b') e do Código Civil (art. 20) e, em relação aos estudantes, violava o ECA em questões de ordem pública, que se sobrepõem ao poder familiar (arts. 17, 18 e 232 do ECA).


Muito interessante também a orientação do Conselho Estadual de Educação do Rio Grande do Sul, na Indicação nº41/2013, juntada a este processo: o Conselho conclui que "uma educação de qualidade é pautada na relação transparente e de confiança entre Direção, professores, alunos e pais e que a construção de conhecimentos acontece sem o controle de instrumentos de vigilância, razão pela qual orienta que não sejam utilizadas câmeras de vídeo nas dependências internas das instituições que integram o Sistema Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul".


Da mesma maneira, o Conselho Municipal de Educação de Porto Alegre, na Indicação nº 008/2013, entendeu pela "vedação do uso de câmeras de videomonitoramento nas salas de aula, sala dos professores, secretaria, biblioteca, banheiros, vestiários, e de outros locais de reserva de privacidade, bem como em todos ambientes de acesso e uso restrito da escola".


A decisão do TRT da 4ª Região cita decisões análogas do próprio tribunal e também o Parecer nº 15.426/2010 da Procuradoria do Domínio Público Estadual do Rio Grande do Sul, que até entende legítima a instalação dos equipamentos de vigilância em alguns pontos das escolas, com a finalidade de coibir a violência e o vandalismo, mas opõe-se à instalação de câmeras nos locais de reserva de privacidade, como, por exemplo, banheiros, salas de aula, salas dos professores, ambientes de uso privativo dos trabalhadores, salas ou gabinetes de trabalho, vestiários, dentre outros.


Nesses espaços, conforme a opinião técnica, há que se preservar a intimidade e a imagem dos alunos e servidores, sob pena de contrariar os artigos 17, 18 e 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990) e o artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal.


Além da questão do direito à imagem, já mencionado, a utilização de sistema de videomonitoramento em sala de aula não é direito diretivo do empregador, afrontando direitos fundamentais dos professores, por flagrante violação à livre docência, à liberdade de ensino e à livre expressão.


Para os defensores da sala de aula livre de câmeras de monitoramento não há que se falar em relativização de direitos e garantias fundamentais: aqui a Constituição e as leis infraconstitucionais que regulamentam a matéria trazem princípios que não permitem conclusão diferente.


Reforçando, a maioria dos julgados trabalhistas vai ao encontro do entendimento de que se deve proteger a intimidade e a privacidade do professor: profissional ao qual deve ser assegurado, além da proteção à privacidade e a liberdade de expressão, o princípio da liberdade de cátedra. A vigilância pode parecer positiva, mas as imagens são invasivas e violadoras de direitos.


Muito importante, enfim, que façamos uma análise do fato de que o videomonitoramento das salas de aula tem sido sugerido/promovido após vários episódios de violência e/ou furtos dentro das escolas.


Antes de violarmos direitos fundamentais dos cidadãos, precisamos pensar o que a violência escolar diz de nós enquanto sociedade.


Há tempos a escola pública vem sendo sucateada, a desvalorização social e salarial dos profissionais de educação é absurda; são constantes os cortes de pessoal de apoio e é visível a diminuição de exigência de aprendizado. A maioria dos prédios escolares são malconservados e mal aparelhados e tudo isso cria espaços de tensões constantes.


De acordo com a OCDE, 12,5% dos professores ouvidos em nosso país foram vítimas tanto de agressões verbais quanto de ameaças de estudantes ao menos uma vez por semana. Comparado a 34 outros países é o mais alto. Os docentes brasileiros passam por avaliações, por critérios de rendimento, por exaustivas cargas de trabalho e ainda assim são desprestigiados.


O investimento em educação pública é parte crucial da complexa ação de diminuir a desigualdade brasileira e o videomonitoramento em sala de aula, como reforço de segurança, se presta a mais um paliativo das medidas realmente necessárias para que o professor seja reconhecido e possa exercer sua função social com dignidade e respeito.

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1 Comment


Wellson Nunes
Wellson Nunes
Feb 16, 2023

Ótimo!

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