Portarias, vagas e modulação (Parte 2): a ilegalidade da limitação genérica de vagas para Medicina
- Edgar Jacobs
- há 20 horas
- 5 min de leitura
Na primeira parte deste artigo, discutimos aspectos procedimentais do julgamento dos embargos na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 81, que trata da abertura de cursos de Medicina no Brasil. Explicamos que, embora o objeto principal da ação fosse a validade do chamamento público, os embargos de declaração passaram a tratar de um tema correlato: a modulação dos efeitos da decisão para os processos de autorização ainda em tramitação.
Entre os temas abordados no voto do relator, destaca-se a fixação de um número máximo de vagas por curso, aplicada aos pedidos pendentes. Segundo o voto, “a definição de quantitativos máximos de cursos e vagas a serem abertos em determinada localidade é conduta igualmente observada no âmbito da criação/expansão de vagas por meio de atendimento ao chamamento público” e, por isso, tratar-se-ia, “em princípio”, de mérito administrativo, insuscetível de controle judicial em sede de ação constitucional.
Com a devida vênia, essa conclusão incorre em equívocos relevantes — não por erro técnico, mas porque a ADC, por sua natureza, não comporta contraditório nem aprofundamento fático sobre temas laterais, como a regulamentação infralegal da educação superior.
Acesse a primeira parte desse texto
A ilegalidade da limitação genérica de vagas
A imposição de um limite uniforme de vagas — como os 40 a 60 fixados na Portaria MEC nº 531/2023 — não é questão de conveniência administrativa, mas sim de afronta direta ao princípio da legalidade, à Lei nº 12.871/2013, à Lei nº 9.394/1996 (LDB) e a atos administrativos já consolidados.
A começar pela Lei nº 12.871/2013 — norma aplicável a todos os processos objeto da modulação da ADC 81 —, não há qualquer previsão legal de número máximo de vagas por curso. Nos chamamentos públicos anteriores, foram usados números diferentes e a padronização de vagas visava apenas tornar comparáveis as propostas concorrentes, o que não se aplica aos processos judiciais individualizados, que não concorrem entre si.
Já a LDB determina, no Art. 7º, que as instituições privadas devem ser autossustentáveis. Isso significa que cada curso deve ter liberdade para estabelecer seu modelo econômico-pedagógico, de forma compatível com sua estrutura e sua realidade regional. Ao impor um teto rígido, a Administração compromete a viabilidade econômica de cursos em regiões de maior custo, como ocorre em localidades interioranas, com maior dificuldade de contratação docente e maior necessidade de infraestrutura. Nessas situações, a previsão de um número maior vagas é, muitas vezes, a única forma de garantir a sustentabilidade sem onerar de forma proibitiva os estudantes.
Portanto, a restrição padronizada frustra o próprio modelo legal de funcionamento do ensino superior privado, além de contrariar os objetivos de interiorização do curso de Medicina, previstos na Lei nº 12.871/2013 e referendados pelo STF.
Desrespeito ao ato jurídico perfeito
Outro ponto crítico é o desrespeito a atos administrativos já consolidados no curso regular dos processos de autorização.
Nos pedidos de autorização, o número de vagas é normalmente definido na fase de avaliação in loco, conduzida por comissões especializadas do INEP. O relatório técnico resultante dessa visita analisa a infraestrutura disponível, o corpo docente, os campos de prática e demais condições de oferta. Essa análise inclui uma indicação objetiva do número de vagas compatível com a capacidade da instituição.
Na maioria dos casos, o MEC não apresenta impugnação aos relatórios de avaliação in loco, o que configura uma validação tácita do número de vagas recomendado. Nessas situações, forma-se um ato jurídico perfeito, regularmente constituído sob a legislação vigente à época, já integrado ao processo decisório e apto a produzir efeitos. A tentativa de rediscutir esse quantitativo posteriormente, com base em uma portaria genérica, representa violação direta aos princípios da legalidade e da segurança jurídica.
Nos casos em que há impugnação formal do relatório por parte do MEC, e a decisão final é proferida por instância técnica competente — no caso, a CTAA (Comissão Técnica de Acompanhamento da Avaliação) —, configura-se uma hipótese de coisa julgada administrativa. A definição do número de vagas resulta de um procedimento regular, técnico e conclusivo, com contraditório plenamente assegurado, em que a própria Administração Pública atua como parte e julgadora. Ultrapassada essa fase, com decisão definitiva e sem previsão legal para rediscussão, não cabe reabrir o mérito por norma infralegal superveniente, como pretende fazer a Portaria MEC nº 531/2023.
Impor um teto padronizado após o encerramento da fase avaliativa e da validação técnica pelo próprio Estado desrespeita a confiança legítima do administrado, infringe a boa-fé administrativa e afronta, sobretudo, a vedação à retroatividade de normas. Trata-se de uma conduta que compromete a integridade do processo regulatório e gera instabilidade sistêmica no setor educacional e não pode ser tratada como mero ato regulamentar de caráter discricionário.
Tal conduta, enfim, não é mera discricionariedade de uma norma regulamentar, ela contraria frontalmente o artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que exige do gestor público a consideração dos efeitos concretos de suas decisões, especialmente quando envolvem situações consolidadas. A revisão de ofício, por meio de portaria, de um número de vagas já avaliado e aceito pelo próprio MEC, equivale a desconstituir unilateralmente um ato jurídico perfeito, o que é inadmissível no ordenamento jurídico brasileiro.
Inadequação da analogia com os chamamentos públicos
Outro equívoco argumentativo que precisa ser esclarecido é a tentativa de aplicar aos processos modulados os mesmos critérios quantitativos usados nos chamamentos públicos.
Há pelo menos três razões pelas quais essa analogia é inadequada:
1. O chamamento público não impôs um limite mínimo de 40 vagas;
2. Segundo Nota Técnica da SERES/MEC, o número de 60 vagas representa o “mínimo viável”, o que pressupõe a possibilidade de deferimentos superiores, conforme as condições locais;
3. No chamamento, a padronização serve para permitir a comparação entre propostas concorrentes — o que não se aplica aos processos individuais submetidos à modulação.
A aplicação automática de um parâmetro quantitativo padronizado desconsidera a natureza individual, técnica e não concorrencial dos processos que tramitam fora da lógica do chamamento.
Por derradeiro, além das ilegalidades apontadas, a limitação genérica de vagas compromete o aproveitamento racional de recursos públicos e privados já disponíveis. Em diversas regiões, há campos de prática e infraestrutura suficientes para a formação de um número maior de alunos. Impedir o uso pleno dessas estruturas representa desperdício e descoordenação entre a política educacional e as reais condições da rede de saúde.
A lógica por trás da limitação de vagas — evitar cursos inflados em locais sem estrutura — é válida, mas não pode ser aplicada cegamente. Em locais com capacidade instalada robusta, a limitação artificial das vagas atua contra o próprio interesse público.
Conclusão
A limitação de vagas, apresentada como um argumento complementar no voto dos embargos da ADC 81, merece revisão urgente. A questão não se resume a mérito administrativo, mas envolve ilegalidade manifesta, violação de ato jurídico perfeito, inobservância de normas federais e ofensa à decisão do próprio STF, que assegurou o respeito ao devido processo administrativo nos casos modulados.
Não se trata de uma crítica à qualidade técnica do voto — que mantém o padrão elevado de fundamentação —, mas sim do reconhecimento de que certas nuances fáticas e jurídicas escapam ao escopo estreito de uma ação constitucional. Por isso, essas distorções precisam ser enfrentadas, seja por reconsideração administrativa, seja por controle judicial posterior, sob pena de se consolidar uma limitação arbitrária e nociva à expansão qualificada do ensino médico no Brasil.

Gostou deste texto? Faça parte de nossa lista de e-mail para receber regularmente materiais como este. Fazendo seu cadastro você também pode receber mais informações sobre nossos cursos, que oferecem informações atualizadas e metodologias adaptadas aos participantes.
Curso sobre as novas regras do EAD. Em breve! Entenda as transformações do EAD desde a Lei de Diretrizes e Bases, de 1996, e conheça as perspectivas na áreas
Temos cursos regulares, já consagrados, dos quais já participaram mais de 800 profissionais das IES. Também modelamos cursos in company sobre temas gerais relacionados ao Direito da Educação Superior, ou mais específicos. Conheça nossas opções e participe de nossos eventos.
Comments