O direito ao esquecimento, apesar de hoje predominantemente civilista, tem origem no Direito Penal, especificamente nas searas processual penal e criminológica; relaciona-se à possibilidade de reabilitação de quem, tendo cumprido a sanção penal imposta pelo Estado, faz jus a ter apagado o antecedente criminal de seus registros pessoais como forma de permitir sua completa reinserção social.
O Código Penal, pois, prevê a reabilitação criminal com o sigilo dos antecedentes criminais de um indivíduo que já cumpriu a pena, isso caso obedecidos e provados os critérios da lei em ação autônoma. Nesse caso são suspensos os efeitos extrapenais, secundários e específicos da condenação.
Esse direito individual sempre esbarrou no direito coletivo que garante a informação plena e hoje é elevado a uma grande potência em razão da existência das ferramentas de busca e o acesso on-line a qualquer tipo de arquivo digital, oficial ou não.
A relevância do tema tem crescido e a matéria está para ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal em uma ação peculiar; leia:
Fato é que o direito ao esquecimento tomou um corpo diferente com a universalização da internet e envolve toda sorte de pessoas (criminosas ou vítimas) e condutas (criminosas ou não).
Deve ser analisado sob o prisma dos direitos da personalidade versus o direito coletivo à informação e também sob o ponto de vista do seu alcance; afinal, um dado ser indexado (ou não) pelas ferramentas de busca amplia ou limita - e muito - a sua divulgação.
A indexação ou não de uma notícia
Quando um fato de relevância/interesse acontece, ele é imediatamente publicado nos jornais online e/ou nas redes sociais. Quanto mais impactante a notícia, mais rapidamente e em mais ambientes virtuais se espalhará.
Nesse mesmo ínterim as várias ferramentas de busca existentes estão rastreando e varrendo a web à procura de novos conteúdos ou de sua atualização em páginas antigas. São robôs que, ao identificar as informações, capturam o conteúdo e cadastram os links encontrados em sua base de dados.
A página visitada (e rastreada) é, então, indexada no site de busca, o que significa que será localizada por qualquer usuário a partir de seu navegador, desde que faça o uso das palavras-chave corretas.
O site de busca, que também é chamado de motor de busca, mecanismo de busca ou site de pesquisa, entrega ao usuário uma página com sugestão de resultados, ou seja, com os links direcionando para o link que foi cadastrado pelo robô/rastreador.
O sistema funciona via IA, ou seja, quanto mais usamos um robô/rastreador determinado mais “ele se aperfeiçoa no assunto”. O aprendizado de máquina permite, inclusive, que o buscador se especialize no usuário específico, pois captura sua personalidade, gostos e tendências.
O Google virou sinônimo para site de busca, pois domina mais de 90% de todo o tráfego orgânico da internet, mas temos também o Bing, o Yahoo, o Ask.com, o Aol.com, o Baidu, o DuckDuckGo, dentre outros.
Muitas vezes, quando alguém ajuíza uma ação na justiça pleiteando ter seu direito ao esquecimento garantido, está pleiteando ter seus dados/informações e notícias correlatas desindexadas pelos sites de busca. É um ponto interessante, claro, pois sem a indexação o dado terá o alcance enormemente reduzido.
Não é o caso do episódio que chegou ao Supremo e que ensejará o julgamento sobre o direito ao esquecimento. Leia aqui.
A GDPR, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados europeu
Quando a GDPR entrou em vigor em 2018 houve um grande impacto na União Europeia, pois essa regulação sobre proteção de dados foi além da simples definição do direito a ser esquecido.
Nos arts. 16 a 18 encontram-se presentes os direitos à retificação e ao apagamento de dados, sendo que retificar pode significar corrigir ou completar dados pessoais incompletos. O apagamento dos dados, por sua vez, é resultado do direito a ser esquecido, que deve ser exercido sem demora injustificada quando presentes os requisitos definidos na norma.
Como todo direito, o de ser esquecido não é absoluto e não se aplicará quando o tratamento do dado se revelar necessário:
ao exercício da liberdade de expressão e de informação;
ao cumprimento de uma obrigação legal que exija o tratamento prevista pelo direito da União ou de um Estado-Membro a que o responsável esteja sujeito, ao exercício de funções de interesse público ou ao exercício da autoridade pública de que esteja investido o responsável pelo tratamento;
por motivos de interesse público no domínio da saúde pública, nos termos do artigo 9, n.2, alíneas h) e i), bem como do artigo 9, n. 3;
para fins de arquivo de interesse público, para fins de investigação científica ou histórica ou para fins estatísticos, nos termos do artigo 89, n.1, na medida em que o direito referido no n.1 seja suscetível de tornar impossível ou prejudicar gravemente a obtenção dos objetivos desse tratamento; ou
para efeitos de declaração, exercício ou defesa de um direito num processo judicial.
A GDPR teve grande influência na nossa LGPD, em vigência desde setembro desse ano, mas a norma europeia expressa o direito que as pessoas têm de excluir informações que não são mais relevantes, obrigando o Google, por exemplo, a criar uma dinâmica de desindexação, enquanto a LGPD não possui essa previsão específica; há o princípio de que a empresa só possa usar o dado tratado enquanto ele for necessário, mas não há qualquer regulação sobre direito ao esquecimento.
De toda forma, é simples perceber que a questão levada ao Supremo – relativa ao caso Aída Curi – difere, e muito, do que vem sendo determinado pelas leis relativas à proteção dos dados. Por isso a crítica de relacionar o caso ao tema específico do direito ao esquecimento, conectado, na atualidade, à proteção dos dados.
Critérios e parâmetros para definir (e como aplicar) um eventual direito ao esquecimento
Nelson Rosenvald, ainda em 2016, já dizia que o principal desafio é o de encontrarmos parâmetros objetivos de adequação entre a tutela da intimidade e a liberdade de informação. Afinal,
“o direito ao esquecimento não atribui a ninguém o direito potestativo de apagar fatos ou de reescrever a história (ainda que seja a própria história). O que ele contempla é a possibilidade de se discutir os limites da utilização concedida aos fatos pretéritos, notadamente o modo e a finalidade com que são lembrados. É uma garantia contra o que a doutrina tem chamado de “superinformacionismo”.”
Pablo Rodriguez Martinez, citado em texto do Canal de Ciências Criminais, sugere cinco parâmetros para definir a possibilidade de se conferir o direito ao esquecimento:
Domínio público: para que um dado possa ser rememorado e sua divulgação possa ser considerada lícita é necessário que, em algum momento, tenha sido atingido o domínio público.
Preservação do contexto original da informação pretérita: a informação deve preservar o teor integral da notícia original, sob pena de o direito de informar ser convertido em abuso.
Preservação dos direitos da personalidade na rememoração: Deve-se, sempre que possível, salvaguardar a imagem, a honra, a privacidade e o nome do envolvido na informação, evitando violações aos seus direitos fundamentais.
Utilidade da informação: a informação deve atender a um efetivo interesse público e que não corresponda a uma mera curiosidade. A ideia é evitar o caráter mercadológico e/ou vexatório da publicação.
Atualidade da informação: diferentemente de apagar o passado ou impedir a divulgação dos fatos, diz respeito ao magistrado ponderar a atualidade da informação, impedindo que certos dados passados estejam disponíveis permanentemente, a qualquer tempo e de forma ilimitada.
O autor joga uma luz sobre o assunto, balanceando os direitos. Em sua visão, se a divulgação da informação não superar os cinco critérios propostos, deve-se priorizar a proteção aos direitos da personalidade, com a consequente aplicação do direito ao esquecimento.
Para outros teóricos, como a professora Denise Pinheiro, não existe no ordenamento jurídico brasileiro um direito com tais características, bem como considera inadequada qualquer formatação neste sentido. Aponta violação à liberdade de expressão expressa na Constituição da República, “que veda toda e qualquer censura de natureza política, artística e ideológica, não sendo admissível, assim, a proibição de se versar sobre fatos do passado, especialmente quando já tiverem se tornado públicos licitamente”.
Vários aspectos em jogo
A internet mudou o mundo e ainda não compreendemos totalmente o que pode nos atingir individualmente caso não existam limites na publicação de dados/imagens com livre indexação pelos mecanismos de busca. A facilidade na comunicação e a dispersão da informação, inclusive com todas as possibilidades de fraudes digitais, como o deepfake, por exemplo, podem destruir reputações e vidas.
Precisamos de tempo para compreender o reflexo dessas mudanças sociais sobre nossas leis e debater como regras interferirão na gestão dos conteúdos disponibilizados. Precisamos ser capazes de separar acontecimentos reais das notícias falsas primeiramente e depois gerenciar o que pode atentar contra direitos como a honra, a dignidade humana, a privacidade e a intimidade, sem ferir a liberdade de expressão e informação.
Não é tarefa banal: falar em direito ao esquecimento abrange nuances diversas. Tem as peculiaridades do direito ao esquecimento digital; do direito de esquecer e de ser esquecido em outras mídias; da informação antiga com acesso facilitado pela internet; da informação desatualizada; da informação nova retratando o passado; da desindexação e do apagamento.
Ainda que os fundamentos de proteção aos direitos sejam os mesmos, cada situação vai exigir uma análise singular, relembrando que não há uma legislação específica sobre o tema no Brasil além do Marco Civil da Internet, que determina, por exemplo, que, em caso de veiculação de conteúdos pornográficos não consentidos, os provedores devem retirar o material após a notificação da vítima.
O certo é que fatos - criminosos ou não - relevantes e/ou pitorescos jamais ficaram ou ficarão no esquecimento. Em toda nossa história eles se transformaram primeiramente em romances, depois em filmes, novelas, documentários, séries e podcasts. Fidedignos ou nem tanto, mantém acesa a história e os juízos que fazemos sobre os personagens da “vida real”. Algumas obras surgem, inclusive, para desmistificar condutas e até redimir indivíduos, como temos visto nos inúmeros trabalhos artísticos inseridos no hoje chamado True Crime.
O que sempre existirá, de fato, é o apagamento, a remoção ou desindexação de dados, sendo o esquecimento um efeito que nenhuma decisão, judicial ou administrativa, pode gerar. Em certo sentido é mesmo um direito ilusório, quimérico, mas nem por isso impassível de análise, discussão e - quiçá - alvo de regramento.
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