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Parecer nº 637/2025: o CNE quer limitar a especialização das instituições?

Uma análise sobre os riscos à autonomia e à inovação na pós-graduação lato sensu.


Após a reunião do CNE realizada em 20 de outubro, foi divulgado, no início de novembro, o Parecer CNE/CES nº 637/2025, que apresenta a minuta da nova resolução sobre os cursos de pós-graduação lato sensu, denominados cursos de especialização.

O novo texto traz poucas inovações em relação à minuta discutida em outubro – que já havíamos analisado em artigo anterior – e mantém, em linhas gerais, o mesmo conteúdo. Quando comparado à Resolução CNE/CES nº 1/2018, atualmente vigente, conserva a estrutura essencial e repete boa parte de seus fundamentos, introduzindo apenas ajustes de forma e dispositivos de caráter predominantemente procedimental, voltados à fiscalização e ao compliance, mais do que à formulação de novas diretrizes acadêmicas.

Entre as alterações propostas, um dos pontos que mais chama atenção é a inclusão de uma proibição de oferta de cursos de especialização fora da chamada “linha de atuação principal” da instituição. Segundo o próprio parecer, essa medida seria uma…

“relevante e necessária vedação […], com o objetivo de evitar a oferta de cursos desvinculados da expertise institucional, garantir coerência acadêmica e prevenir a fragilidade formativa para instituições que não possuam autonomia universitária.”

Com base nessa justificativa, o texto da minuta propõe o seguinte dispositivo:

Art. 6º Fica vedada a oferta de cursos de pós-graduação lato sensu em áreas distintas da linha de atuação principal da instituição credenciada. § 1º Entende-se por linha de atuação principal aquela correspondente ao conjunto de atie5vidades formativas comprovadamente desenvolvidas nos últimos cinco anos. § 2º A restrição prevista no caput deve garantir a coerência entre a especialização ofertada e a experiência formativa institucional, evitando-se a proliferação de cursos sem aderência com a entidade proponente, especificamente quanto à sua qualificação e ao seu objeto.

A redação proposta suscita alguns pontos que merecem aperfeiçoamento conceitual.. O conceito de “linha de atuação” não tem correspondência técnica na legislação educacional e tampouco é utilizado por órgãos como a CAPES ou o INEP. O próprio § 1º da minuta agrava a indefinição ao introduzir outro termo impreciso – “atividades formativas” – sem esclarecer o que abrange. A recente regulamentação da educação a distância também recorre à mesma expressão, mas de forma igualmente genérica, sem conceituação clara (art. 3º do Decreto nº 12.456/2025). Já a LDB, em seu art. 1º, menciona “processos formativos”, sem defini-los, e os associa a experiências educativas amplas que ocorrem em diversos contextos – da vida familiar ao trabalho, passando pelas instituições de ensino e pelos movimentos sociais.

Essa indefinição conceitual pode, inadvertidamente, gerar situações de difícil interpretação. Uma instituição da área da saúde – como um grande hospital – poderia ter dificuldade para oferecer uma especialização em gestão hospitalar, por envolver conteúdos da área de Administração. A incerteza seria ainda maior em cursos interdisciplinares, como cibersegurança, que integram atividades de diferentes áreas e refletem a necessidade crescente de formações mais amplas e integradas.

Assim, o texto da minuta acaba introduzindo conceitos abertos e de difícil aplicação, o que amplia a margem para interpretações arbitrárias por parte dos órgãos reguladores. Essa indefinição não é apenas teórica: ela tende a repercutir diretamente na aplicação da norma, gerando insegurança jurídica e distorções nos processos de credenciamento e supervisão de cursos e instituições.

O prazo de cinco anos para caracterizar a “linha de atuação principal” também suscita sérias dúvidas. Imagine uma instituição que tenha iniciado há dois anos um curso de graduação em Inteligência Artificial: pela regra proposta, ela não poderia ofertar uma especialização nessas mesmas áreas até completar cinco anos de histórico. E se uma nova fronteira tecnológica ou profissional surgir – como aconteceu recentemente com as Fintechs, a Saúde Digital, os veículos autônomos, ou o uso intensivo de inteligência artificial generativa –, as instituições teriam de aguardar meio decênio para poder oferecer cursos de especialização sobre temas que já estarão, então, em plena maturidade no mercado.

Essa limitação, além de desproporcional, contraria a própria natureza da pós-graduação lato sensu, que deveria ser o nível mais dinâmico, flexível e responsivo às transformações do mundo do trabalho. Ao pretender garantir coerência, a norma acaba criando rigidez e morosidade, o oposto da lógica da educação continuada. Em vez de zelar pela qualidade, engessa a capacidade de inovação das instituições e retarda a formação de profissionais em áreas emergentes que o país mais necessita.

O texto também recorre a outras expressões vagas, como “fragilidade formativa”, sem definir seu conteúdo técnico, e chega a incluir uma justificativa no § 2º – algo incomum em qualquer norma. Essas imprecisões revelam que o problema não está apenas no conteúdo, mas na própria redação do dispositivo, que carece de clareza e precisão. O resultado é uma regra que, sob o pretexto de coibir práticas irregulares, impõe restrições genéricas, afetando inclusive instituições sérias e comprometidas com a qualidade acadêmica.

Essa falta de clareza também se observa na relação entre os arts. 2º e 6º da minuta. Enquanto o primeiro já distingue as instituições com e sem autonomia universitária, restringindo apenas às faculdades a oferta em áreas específicas, o segundo ignora essa diferenciação e adota redação genérica sobre a “linha de atuação principal”. O resultado é um possível desencontro interpretativo que amplia indevidamente o alcance da norma e compromete sua segurança jurídica.

Inovação é um problema?

Outro ponto sensível é que o texto não faz qualquer referência à necessidade de estimular a criação de novos cursos ou de apoiar a adaptação institucional às transformações tecnológicas e profissionais. Esse silêncio é relevante, pois a inovação é hoje um parâmetro jurídico e avaliativo que orienta os próprios instrumentos oficiais de qualidade do ensino superior.

O Instrumento de Avaliação do INEP para credenciamento institucional, por exemplo, atribui nota máxima à política de acompanhamento de egressos que subsidia “ações de melhoria relacionadas às demandas da sociedade e do mundo do trabalho e promove outras ações reconhecidamente exitosas ou inovadoras” (indicador 3.7). Ainda mais clara é a valorização da inovação no indicador 2.2, que considera de excelência as “práticas de ensino de graduação e de pós-graduação com incorporação de avanços tecnológicos, incentivo à interdisciplinaridade e promoção de ações reconhecidamente exitosas ou inovadoras”. Esse padrão não se aplica apenas a universidades e centros universitários, mas também a todas as instituições que não detêm autonomia ampliada.

Há, portanto, um desalinhamento evidente entre o que o INEP considera um sinal de qualidade – a inovação, a interdisciplinaridade e a resposta rápida às demandas sociais – e o que a nova resolução do CNE propõe ao restringir a oferta de especializações.

Impreciso e sem amparo legal.

O art. 4º da Lei nº 13.874/2019 estabelece como princípio a necessidade de evitar o abuso de poder regulatório, especialmente quando ele impede “a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios” (inciso IV). Ao impor uma limitação genérica e temporal à atuação das instituições, a minuta pode contrariar esse preceito, restringindo de forma desarrazoada o campo de atuação de entidades educacionais que buscam acompanhar as transformações do mercado e do conhecimento.

A aplicação da lei em referência revela ainda outro problema: a ausência de análise de impacto regulatório, instrumento essencial da regulação moderna e indispensável em propostas que alteram significativamente o funcionamento do sistema educacional.

Há, também, uma questão de fundo relacionada à autonomia pedagógica das instituições de ensino. Todas possuem essa prerrogativa, embora ela seja mais ampla – constitucionalmente protegida e conhecida como autonomia universitária – nos centros universitários e universidades. A LDB, em seu art. 12, atribui às instituições a competência e o dever de elaborar e executar sua proposta pedagógica, núcleo da qualidade acadêmica e da coerência formativa. Essa é a questão central: as instituições têm o múnus público e, por consequência, o direito de criar propostas pedagógicas, não apenas de repetir o que já realizaram.

Em síntese, o que habilita uma instituição a oferecer um curso não é o tempo de atuação na área, mas a competência do corpo docente que seleciona e a qualidade do projeto pedagógico que elabora, seja em campo novo ou já consolidado. É essa combinação – equipe qualificada e proposta consistente – que legitima sua atuação acadêmica, e não o passado institucional.

Essa prerrogativa decorre diretamente do princípio constitucional da liberdade de ensino, previsto no art. 206 da Constituição Federal, que garante a pluralidade de concepções pedagógicas e o respeito à diversidade de métodos, enfoques e áreas do saber. A restrição imposta pelo art. 6º da minuta, ao limitar a oferta de especializações às “linhas de atuação” dos últimos cinco anos, ameaça essa pluralidade, impedindo que instituições escolham livremente suas orientações pedagógicas, atuem em novas áreas do conhecimento ou se caracterizem pela interdisciplinaridade.

Além disso, nem a Lei nº 9.394/1996 (LDB) nem o Decreto nº 9.235/2017, que estruturam a educação superior, preveem qualquer restrição de área de atuação às instituições credenciadas. Assim, se a resolução for aprovada, o dispositivo em questão será uma espécie de regulamento autônomo, sem amparo na legislação que regula.

E agora? O que pode ser feito?

Em síntese, o Parecer CNE/CES nº 637/2025 representa um esforço relevante do Conselho em atualizar e aperfeiçoar a regulação da pós-graduação lato sensu, buscando maior coerência e qualidade na oferta desses cursos. Ainda assim, o art. 6º da minuta de resolução que o acompanha apresenta aspectos que merecem atenção, especialmente quanto à amplitude de seus efeitos e à precisão de seus conceitos.

Ao combinar, sem fundamentação suficientemente detalhada, critérios temporais rígidos e definições pouco delimitadas, o dispositivo pode extrapolar sua função técnica, resultando em restrições não previstas no marco legal vigente. Mantida a redação atual, há o risco de reduzir a autonomia das instituições, desestimular práticas inovadoras e restringir a pluralidade de concepções pedagógicas – princípios que sustentam a qualidade, a diversidade e a vitalidade da educação superior brasileira.

Diante desse cenário, existe também o risco de uma judicialização desnecessária, que ainda pode ser evitada. Não se trata de temer o debate – o CNE tem demonstrado firmeza e convicção em suas posições –, mas de preveni-lo pela via da prudência e do diálogo, valores que sempre reforçaram a legitimidade e o papel democrático das instâncias de participação da sociedade.

Uma revisão pontual e ponderada desse artigo permitiria, enfim, preservar os avanços da proposta, ao mesmo tempo em que reforçaria o equilíbrio entre a necessária regulação e a liberdade acadêmica que sustenta o sistema educacional.

Parecer 637 - Jacobs Consultoria

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