Às vésperas da sessão de julgamento virtual que pode decidir a abertura de novos cursos de medicina, um grande jornal brasileiro publicou um artigo intitulado “Faculdades Tabajara”, criticando a ampliação no número de cursos.
Ironicamente, o título parece refletir os argumentos do próprio texto.
“Tabajara”, no texto, não se refere ao povo indígena, mas sim a uma empresa fictícia, politicamente incorreta e com produtos questionáveis, que ficou famosa em um programa humorístico brasileiro. O termo é usado para criticar genericamente as faculdades de medicina no Brasil, expondo seis motivos:
1. As faculdades são criadas em “instalações inadequadas”;
2. Não existem professores com formação acadêmica em número suficiente;
3. Não temos vagas para residentes;
4. O governo brasileiro não fechou as más faculdades, como ocorreu nos Estados Unidos;
5. “Os custos da assistência médica aumentam muito quando o médico não sabe como resolver os casos dos pacientes que atende”;
6. Maus médicos são um perigo para seus pacientes.
A terceira razão, realmente, merece reflexão, pois há uma grande restrição em relação às residências médicas. Porém, essa talvez seja a crítica com solução menos complexa. Além da possibilidade de aumentar a oferta deste tipo de treinamento em serviço, o próprio artigo sugere que a OAB resolveu problema similar com um exame pós-faculdade.
O texto ainda acrescenta que “forças ocultas” impedem que o mesmo seja feito na medicina. Assim, o problema não decorre necessariamente das faculdades, mas de forças ocultas e da falta de um exame de qualificação — que, aliás, é aplicado aos médicos formados no exterior. Este exame também resolveria os problemas 5 e 6 apontados.
O fato das ditas faculdades de “má qualidade” continuarem “abertas pelo país afora” foi mencionado como o quarto problema. Quanto a esse tema é preciso mais clareza e menos abstração nos comentários. Quais são essas faculdades? Quantas são? Qual o critério usado para criticar a qualidade? O conhecimento do articulista é admirável, mas não sustenta afirmações tão graves sem dados concretos.
Provavelmente, existem faculdades ruins e talvez o maior motivo para apoiar o aumento da concorrência no setor seja justamente esse. A concorrência é uma fórmula democrática e eficiente para melhorar qualidade e reduzir preços, tema que também é criticado no artigo. Defender de forma abstrata o fechamento de faculdades não considera essa questão.
A referência aos Estados Unidos, ainda na quarta crítica, também carece de esclarecimentos. Se o artigo se refere ao Relatório Flexner, de 1910, que levou ao fechamento de faculdades nos EUA, há críticas severas a esse documento e seus resultados. Por exemplo, em “O relatório Flexner: para o bem e para o mal”, PAGLIOSA e DA ROS afirmam que “Cinco das sete escolas para negros foram fechadas” e que “A escola médica se elitizou e passou a ser frequentada pela classe média alta”. Trata-se de um texto acadêmico que discutimos em um post no ano passado, que de certa forma expõe o risco na importação pura e simples de algumas ideias.
Por fim, as duas primeiras críticas — instalações inadequadas e falta de docentes — carecem de dados concretos, embora tenham apelo popular. Em contraponto a elas é necessário dizer que todas as instituições em funcionamento foram devidamente avaliadas e possuem aval em relação às suas instalações e ao corpo docente. Os quesitos avaliados in loco por professores treinados são públicos e a avalição, embora imperfeita, não é banal. São mais de 40 quesitos que avaliam a o projeto pedagógico, o corpo docente e a infraestrutura. Só por isso, essa crítica já mereceria mais cautela e detalhamento.
Críticas genéricas, mesmo feitas com a elegância típica do autor, colocam todas as instituições e docentes sob suspeita, o que não contribui para um debate sério sobre o tema. Contribui, talvez, para a indústria das fake news e da lacração, que usa a generalização como técnica.
Essas são, em resumo, as discussões necessárias em relação aos pontos levantados no artigo, publicado um dia antes do julgamento da abertura de novos cursos de medicina.
O fechamento do artigo foi contundente: “Não precisamos de mais médicos para concentrá-los nos grandes centros, mas para distribuí-los pelo país, nas localidades que necessitam deles”. Esse pensamento, muitas vezes repetido, ignora que mais médicos induzirão a busca por novos postos de trabalho, o que naturalmente criará oferta de médicos para pequenas cidades. Dessa forma, perpetua a ideia de que restrições de entrada geram, por si só, qualidade, e que a distribuição dos profissionais ocorre independentemente das condições de trabalho.
Sendo seguido esse enredo, farmácia, enfermagem, odontologia e muitos outros cursos – citando aqui somente a área de saúde – também deveriam ter oferta limitada e, magicamente, os profissionais sairiam dos grandes centros para as ”localidades que necessitam deles”.
Esse raciocínio tortuoso ainda é complementado por dados incorretos ou contestáveis. No início, por exemplo, o texto compara a densidade médica no Brasil e nos EUA sem dizer que lá ainda não há sistema universalizado de saúde. No final, afirma que no Amazonas há 0,2 médicos por 1000 habitantes sem constatar que a proporção real é de 1,55, segundo o CFM. Erros e omissões assim evidenciam a falta de cuidado com as informações.
O artigo, portanto, destoa do que normalmente se encontra nas colunas e publicações de saúde que acompanhamos. Nesse sentido, é uma publicação que faz jus à empresa fictícia citada no título. Afinal, não comprova o que alardeia e “vende” uma ideia incorreta sobre a abertura de novos cursos de medicina.
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