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É preciso repensar o ensino da Medicina

Atualizado: 7 de out. de 2023

A mais influente e citada referência sobre o tema ensino médico continua sendo o ‘relatório da Educação Médica nos Estados Unidos e no Canadá’, elaborado por Abraham Flexner para a Fundação Carnegie, com implicações diretas em todo o mundo ocidental.


Segundo o estudo de Fernando Luiz Pagliosa e Marco Aurélio Da Ros, O Relatório Flexner: para o bem e para o mal, o estudo de Flexner foi produzido em uma época em que era caótica a situação das escolas médicas nos EUA. Não havia necessidade de concessão estatal para o exercício da Medicina e as escolas atuavam com abordagens terapêuticas das mais diversas, sem padronização, vinculadas ou não a instituições universitárias, com ou sem equipamentos, com critérios de admissão e tempo de duração diferenciados e independentemente de fundamentação teórico-científica.


Estimulada por essa ‘desordem’, a Associação Médica Americana encomendou à Fundação Carnegie um relatório que a ajudasse a reformar a educação médica. Juntos, eles contrataram Abraham Flexner, educador e fundador de uma escola preparatória e futuro fundador do famoso Institute for Advanced Study, em Princeton. O objetivo era exatamente avaliar o estado da educação médica. Depois de visitar todas as 155 faculdades de Medicina da América do Norte, em 180 dias no ano de 1909, ele produziu o documento.


É nesse contexto que Flexner produz seu trabalho mais famoso e ganha notoriedade; a partir de então foi se consolidando um modelo de ensino cujos rastros chegaram à atualidade: escolas de Medicina integradas a universidades, ligadas a hospitais-escola e onde a experimentação, o ensino das ciências básicas e a prática clínica têm lugar de relevância. Exatamente o modelo alemão de educação médica e pesquisa que se contrapunha ao modelo francês.


“O modelo francês, que se irradiou com grande força de Paris para o mundo a partir de 1830, vinha sofrendo a influência do modelo de medicina e educação alemão. No modelo anatomoclínico francês, os estudantes aprendiam ao lado do leito do paciente e nos anfiteatros anatômicos no hospital treinavam as técnicas diagnósticas e terapêuticas, e faziam pesquisas clínicas na faculdade de Medicina. Já o modelo de pesquisa médica alemã estava centrado no laboratório, na hierarquia, na especialização e nas pesquisas experimentais.” (Fernando Luiz Pagliosa e Marco Aurélio Da Ros em O Relatório Flexner: para o bem e para o mal)

O trabalho de Abraham Flexner desencadeou uma reforma no ensino médico na América do Norte, que mais tarde repercutiu com sucesso no Brasil. Agora, as ponderações a respeito de seu relatório e subsequente modelo de saúde têm ocorrido tanto aqui quanto lá. Nosso texto aborda essas inquietações de uma maneira geral, trazendo material publicado por professores brasileiros e americanos.


O relatório


Em seu relatório, Flexner foi ferrenho. Das 155 escolas que visitou, apenas 31 teriam condições de continuar formando os futuros médicos. Seu trabalho se tornou famoso e levou ao fechamento de várias delas.


O documento foi responsável por sistematizar a educação médica com a qual estamos familiarizados: pedagogia tradicional e o método científico como seus princípios centrais.


Também estabeleceu o modelo biomédico individual, ou seja, que se concentra exclusivamente nas causas biológicas da doença, excluindo fatores sociais e ambientais. Não contam para o ensino médico e não são considerados implicados no processo de saúde-doença o social, o coletivo, o público e a comunidade.


Na prática, o estudo de diagnóstico e tratamento das doenças se separou do estudo de prevenção de doenças – ou, melhor, medicina e saúde pública terminaram sendo desmembradas.


Em relação ao indivíduo especificamente, é uma Medicina mais curativista que preventivista. Também se diz que esse modelo evidencia as especialidades médicas, dando menos importância à medicina generalista, que avalia o paciente de forma integral.


Pontualmente, segundo Raphael Augusto Teixeira de Aguiar, as principais propostas desse documento para o desenvolvimento do ensino nas escolas de Medicina são:


  • definição de padrões de entrada e ampliação, para quatro anos, da duração dos cursos;

  • introdução do ensino laboratorial;

  • estímulo à docência em tempo integral

  • expansão do ensino clínico, especialmente em hospitais;

  • vinculação das escolas médicas às universidades;

  • ênfase na pesquisa biológica;

  • vinculação da pesquisa ao ensino;

  • estímulo à especialização médica; e o

  • controle do exercício profissional pela profissão organizada.


A propósito, consta da obra citada que uma das consequências dessa Medicina científica, passível de comprovação, foi a exclusão de muitas práticas alternativas baseadas no empirismo ou no curandeirismo, o que é de considerável relevância. (A construção internacional do conceito de atenção primária à saúde (APS) e sua influência na emergência e consolidação do Sistema Único de Saúde no Brasil)


Vale conferir o trabalho do autor e se inteirar também das iniciativas de valor histórico da Alemanha, Inglaterra, Rússia, China, Canadá e Estados Unidos; todas mundialmente influentes nas discussões sobre prática clínica e a saúde pública.


Análises


Uma crítica constante em relação ao trabalho de Flexner é em relação à desumanização do atendimento médico/paciente, pois o educador não teria se preocupado com esse aspecto do exercício médico. No trabalho acima mencionado, é dito que essa relação direta não é tão facilmente demonstrável, atribuindo esse juízo à inserção das modalidades de produção capitalista na prática, bem como à fragmentação do trabalho médico e à consequente perda da responsabilidade sobre o paciente por parte dos profissionais especialistas.


“Ao longo do século XX ocorreu uma desumanização do que antes era naturalmente humanizado e, por ser esse processo posterior a Flexner, tal preocupação não se constituiu necessariamente em uma prioridade”.

O tópico é espinhoso: para alguns, confundimos atendimentos médicos insatisfatórios com atendimentos médicos desumanizados, já que a profissão, apesar de eminentemente técnica, jamais poderia ser desumanizada.


Outros fazem uma crítica sociológica das práticas médicas modernas e afirmam que quando a Medicina passou a lidar com casos/doenças e não com pessoas/pacientes se tornou desumanizada.


Fato que, na atualidade (e especialmente passada a pior fase da pandemia da Covid-19, verificados os danos sociais e pessoais por ela causados), já são vistos movimentos pedindo ações afirmativas para que sejam abordados dentro de sala de aula os determinantes sociais da saúde, bem como ações políticas diretas com impactos mais abrangentes na melhoria da saúde, equidade e bem-estar individual.


Afinal, lidar com pessoas/pacientes é lidar com o que as cerca e envolve.


Uma crítica específica ao modelo flexneriano, por exemplo, é que os pesquisadores costumam citar o atributo individual da raça como um fator de risco para doenças sem questionar a experiência ambiental associada ao racismo. Da mesma forma, a lente na educação médica é muitas vezes inclusiva da pobreza, mas não da opressão, da raça, mas não do racismo, do sexo, mas não do sexismo, e da homossexualidade, mas não da homofobia (tradução livre de trecho do texto Medical Education Needs Rethinking, de Sarah Matathia e Monique Tello).


A mudança de cenário é para que os novos médicos sejam aptos e responsáveis por – também - desmantelar as causas sociais das doenças e, para tanto, eles precisam ser educados, orientados, incentivados e tenham essa ideia incorporada em suas carreiras médicas.


A ideia é não mais minimizar fatores sociais e ambientais pois, ao fazê-lo, prejudicaríamos nossa compreensão e tratamento de doenças.


No texto Medical Education Needs Rethinking, as autoras afirmam que hoje vivemos condições semelhantes que levaram à produção do famoso relatório cujo propósito era padronizar a educação para que os médicos fossem treinados uniformemente. Agora, no entanto, com os estudantes cursando uma base sólida de disciplinas de saúde pública.


Realmente, mais de uma crise da Covid-19 atingiu em cheio os EUA e provou que o país alçou um ponto crítico de saúde pública. Bem como o Brasil, esteve entre as maiores taxas de infecção e mortalidade do mundo: estatísticas que trouxeram à tona tristes vulnerabilidades.


Um novo modelo de educação médica é, sim, necessário


As críticas ao setor da saúde não são de hoje e não ocorrem apenas no Brasil. Desde a década de 1960 há movimentação no meio acadêmico, em instituições internacionais, governos, fundações e na sociedade em geral. Cada povo reagiu a seu modo e possibilidade, sendo uma das reformas mais profundas a ocorrida em nosso país.


Vale mencionar o movimento social de Reforma Sanitária do início da década de 1970, que resultou na universalidade do direito à saúde, oficializado com a Constituição Federal de 1988 e a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).


Mas, ainda assim, o desenvolvimento dos recursos humanos sempre esteve em segundo plano e o setor educacional continuou desvinculado da reorganização dos serviços, da redefinição das práticas de atenção e dos processos de reforma.


Pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Medicina, o eixo do desenvolvimento curricular deve ser o das necessidades de saúde da população, promovendo a interação entre ensino, serviço e comunidade, preferencialmente nos serviços do SUS, mas a verdade é que grande parte continua com a estrutura secular dos modelos norte-americanos, instituídos com base nas recomendações do Relatório Flexner.


É salutar a modificação curricular nos termos das DCN e a modificação do modelo que forma nossos profissionais: saúde pública não é apenas para os políticos. Devemos equipar os médicos com as habilidades necessárias para defender efetivamente as políticas de que precisamos.


Vale ressaltar que as DCN estabelecem formal e organizadamente os princípios, os fundamentos e as finalidades da formação em Medicina. No Brasil, as DCNs de 2014 já trouxeram mudanças que priorizam a formação generalista, conteúdos fundamentais holísticos e vinculados ao processo saúde-doença das comunidades, o que é muito louvável.


Nossas instituições de ensino estão à frente das norte-americanas nesse sentido, pois precisam efetivar estruturas curriculares que favoreçam o atendimento básico e o uso de equipes multidisciplinares para atendimento às famílias.


Necessário é afastar os principais empecilhos à formação médica integral que compõem as DCNs; empecilhos que distanciam a teoria da realidade.


quem defenda inclusive que o relatório Flexner seja suplantado por outro documento que una novamente Medicina e saúde pública, incentivando ações concretas para uma melhor prática médica, o que pressupõe dar espaço para as dimensões social, psicológica e econômica da saúde do indivíduo.


Para além desses aspectos, o currículo deve pretender uma formação ético-humanista, que se articula com valores maiores e leva o profissional a se preocupar com a comunidade e com a família do paciente; enfim, com o atendimento de pessoas e não apenas para tratar a doença.


Precisamos de novos currículos e também de novos cursos com currículos que atendam as necessidades contemporâneas. Como já mencionamos em ocasiões anteriores, se bem avaliados durante o processo de criação, novos cursos podem contribuir e muito para induzir qualidade no mercado. Sem falar na concorrência, que induz a elevação dos padrões de qualidade.


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