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O calendário do MEC, a proibição dos cursos de Medicina e a falta de análise de impacto regulatório

Atualizado: 7 de jun. de 2022

A Portaria 204/2022 estabeleceu o “calendário” regulatório do MEC, um calendário que, na verdade, só tem um período definido: todos os meses restantes de 2022. Isto porque todos os “prazos” previstos para atividades regulatórias abrangem desde o dia 1º de abril até o dia 31 de dezembro.


No dicionário Michaelis, calendário pode se referir simplesmente à divisão do tempo ou a uma “tabela prefixada com as datas de determinados acontecimentos”, definição esta mais adequada ao previsto no Decreto 9.235/2017 e demais normas educacionais que usam o termo “calendário” para se referir a períodos de abertura do sistema e a prazos previstos para cada atividade regulatória.


O que aparentemente ocorreu neste caso foi uma substituição do calendário regulatório por um sistema de fluxo contínuo que, a priori, pode ser bom para as Instituições de Ensino.


O problema é que existem algumas normas que se referem ao termo “calendário” (a própria Portaria 204/2022 usa essa denominação), motivo pelo qual o conteúdo da norma não corresponde ao seu título nem satisfaz o previsto em outras regras com as quais deveria se harmonizar. Ou seja, o “calendário” previsto não é um calendário regulatório.


Entendemos a aparente boa intenção. A definição dos prazos do calendário já estava atrasada e o MEC já pretendia implantar o fluxo contínuo, por isso deve ter aproveitado a norma antiga, incluindo apenas um prazo único. Mas a técnica usada – manter o termo “calendário” – talvez não seja a mais indicada. O ideal seria uma norma nova, que implantasse a abertura contínua do sistema de regulação e modificasse todas as referências ao calendário.


Não bastasse a questão semântica, há outro problema na Portaria em questão. Ela deveria inaugurar uma nova fase das normas do MEC, uma fase em que todos os atos normativos deveriam ser precedidos de Análise de Impacto Regulatório (AIR). Todavia, negligenciou essa inovação, violando a lei.


A Análise de Impacto Regulatório é uma determinação, muito pertinente aliás, da Lei de Liberdade Econômica – LLI (Lei 13.874/2019) e do Decreto 10.411/2018. O objetivo seria evitar normas regulamentares que se afastem da realidade, que tenham efeitos nocivos ou que caracterizem abuso de poder regulamentar por parte do Estado.


A falta da AIR é perceptível neste caso. Por exemplo, a LLI prevê como forma de abuso de poder regulatório “criar reserva de mercado e ou impedir a entrada de novos competidores no mercado” (art. 4º). Entretanto, a Portaria 204/2022 mantém a restrição aos cursos de medicina no calendário regular, impondo um bloqueio que sequer condiz com a Lei do Programa Mais Médicos – PMM (Lei 12.871/2013) e criando uma verdadeira reserva de mercado, que impede a entrada de novos competidores. Se antes esta restrição podia, em tese, simplesmente ser incluída na portaria, agora é necessária a análise de impacto regulatório.


Em face da nova regra da AIR, vigente desde o final de 2021, não é possível sequer dizer que a portaria reflete uma interpretação da Lei do PMM. Afinal, o caput do art. 4º da LLI afirma que só em “estrito cumprimento a previsão explícita em lei” seria válida uma potencial reserva de mercado ou fechamento do mercado para novos ingressantes.


Na prática, uma análise de impacto teria de enfrentar a questão dos possíveis efeitos do ato normativo e, dentre outros pontos descritos no Decreto 10.411/2020, apresentar relatório que contivesse:


  • definição dos objetivos a serem alcançados;

  • descrição das alternativas possíveis ao enfrentamento do problema regulatório identificado, consideradas as opções de não ação, de soluções normativas e de, sempre que possível, soluções não normativas;

  • exposição dos possíveis impactos das alternativas identificadas, inclusive quanto aos seus custos regulatórios;

  • mapeamento da experiência internacional quanto às medidas adotadas para a resolução do problema regulatório identificado;


Sem a AIR persistem sérias dúvidas, tais como:


  • Qual é o objetivo de impedir o protocolo de novos cursos de Medicina? E esse objetivo prevalece mesmo com o PMM suspenso?

  • Foram analisadas alternativas regulatórias simples como: maior rigor no processo de avaliação ou uma pontuação extra para cursos em cidades carentes de saúde?

  • Qual é o impacto de anos de sistema fechado para novos cursos de Medicina? Foi considerado que a população e suas demandas de saúde não param de crescer?


A respeito da experiência internacional, por fim, caberia questionar se não foi considerada a controversa experiência com o Relatório Flexner nos Estados Unidos.


Lá, o estudo financiado pela associação médica trouxe, ao lado de recomendações relevantes, a sugestão de fechamento de escolas médicas e o bloqueio do mercado. Esta medida, adotada no início do século XX, não contribuiu para a qualidade e a inovação na área médica, além de ter elevado o custo dos serviços, segundo literatura clássica da área no EUA. O mesmo foi constatado em reportagem da revista Forbes e, mais recentemente, em discussões sobre a necessidade de abertura de vagas privadas no ensino médico também ocorreram em Portugal.


Ainda quanto a essa questão, a Organização Mundial da Saúde divulgou, em 2013, documento sobre a educação em saúde no mundo no mundo, sugerindo cuidado com a captura do regulador por grupos de interesse:


“Para constatar se uma força de trabalho de saúde cumpre seu mandato de responsabilidade social perante a população que serve, o sistema de regulamentação da educação dos profissionais de saúde deve ser avaliado em termos de seu impacto na quantidade, qualidade e relevância, com base em indicadores apropriados. Um processo robusto e transparente de prestação de contas e mecanismos de informação pública deve ser implementado para garantir que a regulamentação produza os resultados esperados e que não seja monopolizada por grupos de interesse”. (Tradução livre)

Essa advertência deveria ter sido considerada se houvesse uma AIR, contudo, tal como os demais temas mencionados nas indagações acima, esse panorama internacional muito provavelmente não foi sopesado pela Portaria 204/2022.


Retomando o tema inicialmente abordado, constatamos que também não existe análise de impacto regulatório relativa à mudança do sistema de calendário para o sistema de fluxo contínuo. Esse sistema que, repita-se, parece bastante favorável para as IES, demanda uma organização do MEC e uma disponibilidade de avaliadores que parece ser diferente da atual situação.


Por certo, o uso de avaliações a distância facilita a atuação das comissões de especialistas e o conhecimento acumulado do MEC já deve permitir essa mudança, porém, uma análise de impacto seria bastante pertinente para validar essa mudança.


Enfim, que seja bem-vindo o novo sistema de fluxo contínuo, mas que as boas práticas em Direito, inclusive quanto à análise de impacto, possam também ser valorizadas. Talvez assim, além de não termos mais que nos preocupar com datas e “janelas regulatórias”, o MEC possa notar o quão inconsistente é a política de restrição aos novos cursos de Medicina.


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