Em recente relatório, a InternetLab mapeou o uso do reconhecimento facial em escolas públicas brasileiras, propondo contribuir para o debate em torno do uso das tecnologias de vigilância em ambientes educacionais. Este centro de pesquisa se dispõe a promover o debate acadêmico e a produção de conhecimento nas áreas de direito e tecnologia, sobretudo no campo da internet, atuando – sendo uma entidade sem fins lucrativos - como ponto de articulação entre acadêmicos e representantes dos setores público, privado e da sociedade civil. A intenção é incentivar o desenvolvimento de projetos que abordem os desafios de elaboração e implementação de políticas públicas em novas tecnologias, como privacidade, liberdade de expressão e questões ligadas a gênero e identidade.
Políticas públicas e garantia de direitos
O trabalho da InternetLab publicado sob o título ´TECNOLOGIAS DE VIGILÂNCIA E EDUCAÇÃO, um mapeamento das políticas de reconhecimento facial em escolas públicas brasileiras´ leva em consideração a garantia ao direito à privacidade e à não discriminação no contexto da adoção de políticas públicas para crianças e adolescentes a partir de projetos de implementação de reconhecimento facial em escolas públicas.
A ideia foi identificar os projetos de implementação de reconhecimento facial em um montante das escolas públicas brasileiras e fazer um mapeamento do grau de expansão, formas de uso e quais práticas foram adotadas no uso destas tecnologias em diferentes regiões do país.
Plataformas de busca como Google, Yahoo e Bing, e notórios portais de notícia detectaram quinze casos espalhados pelo país. Para entender como as políticas estavam sendo desenvolvidas e utilizadas nestes casos, os pesquisadores pediram dados detalhados com base na Lei de Acesso à Informação, além de realizarem mais buscas nos portais de transparência e nos sites oficiais das secretarias de educação de cada um deles. Além da coleta de dados documentais, foram feitas entrevistas com gestores públicos responsáveis pela implementação das tecnologias e com especialistas que atuam com temas ligados à educação, direitos digitais e proteção dos direitos das crianças e adolescentes.
Pela análise dos casos, foram exploradas as motivações do Poder Público, assim como as principais práticas e justificativas adotadas para a implementação do reconhecimento facial e levantados os riscos relacionados à adoção destas tecnologias.
É curioso que nenhum município/estado relatou realizar estudos de impacto de risco aos direitos humanos ou análises sobre o potencial de discriminação resultante de softwares de reconhecimento facial anteriormente à execução do projeto. Os municípios que estão mais avançados na implementação do reconhecimento facial apenas afirmam que a tecnologia possui uma alta taxa de precisão. A alegação, contudo, é contrariada por episódio em que o sistema gerou erro sobre frequência escolar.
O estudo também vasculhou como funciona o tratamento dos dados coletados, armazenados e utilizados pelo sistema de reconhecimento facial. Os pesquisadores dizem ter recebido respostas diferentes de cada lugar, mas, no geral, entenderam que o equipamento de reconhecimento facial coleta os dados biométricos do estudante, os armazena em banco de dados próprio do sistema e os utiliza para registrar frequência.
Uma das finalidades citadas entre os municípios para a implementação do reconhecimento facial é evitar a evasão escolar; então, os dados são compartilhados, em alguns casos, com o Conselho Tutelar nas situações em que a ausência do estudante à unidade escolar é preocupante. Também foi informado o compartilhamento de dados entre gestores educacionais e a administração pública para uma melhor execução de políticas públicas voltadas à educação.
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Finalidades do uso da tecnologia
Os poderes locais informaram que as finalidades para a implementação da tecnologia concentram-se em três grupos:
otimização da gestão do ambiente escolar, em que o reconhecimento facial permitiria economizar tempo de aula dos(as) docentes, administrar as faltas escolares, e para gestão de merendas e material escolar;
combate à evasão escolar, para evitar alterações indevidas no registro de presença, para comunicar o Conselho Tutelar e para gerenciamento de programas sociais, em caso de inassiduidade; e
para fins de segurança, para evitar que estudantes saiam sem a autorização e para salvaguardar o patrimônio escolar.
Estes argumentos surgem em razão dos dilemas, problemas e desafios que atravessam a educação pública brasileira, entre eles a superlotação das salas de aula, falta de verbas para alimentação escolar, evasão escolar e violência. Para os pesquisadores, se, de um lado, as finalidades são legítimas, análises sobre os casos de contestação e entrevistas com representantes da sociedade civil demonstram que o reconhecimento facial não parece ser capaz de combater de forma eficiente essas questões e dificuldades que afetam as escolas públicas brasileiras.
É que, por exemplo, as causas que levam ao cenário de superlotação das salas de aula têm ligação com questões estruturais da educação básica nacional, o que dificilmente será resolvido com a implantação de qualquer tecnologia. O mesmo podemos falar da evasão escolar, que está relacionado a questões complexas e dinâmicas, como a pobreza, a falta de transporte, a violência contra crianças e adolescentes, e trabalho infantil, dentre outras.
Principais resultados do estudo da InternetLab
O reconhecimento facial tem sido usado, a nível municipal, por meio de contratos públicos firmados com empresas nacionais que oferecem serviços de tecnologia. O único estado que não aderiu a isto foi o Tocantins. Na maioria dos casos a tecnologia está em fase inicial e de testagem e não abrange toda a rede municipal ou estadual de educação. Apenas em 3 municípios a ferramenta já foi plenamente implementada: Betim (MG), Jaboatão dos Guararapes (PE) e Goiânia (GO).
O estudo questiona se o reconhecimento facial pode ser considerado realmente uma “tecnologia da educação”, capaz de resolver questões estruturais do ambiente escolar, ou se é uma “tecnologia de vigilância”.
Explica-se que fazer essa diferenciação é fundamental para evitar uma provável confusão ao se discutir o assunto. Ou seja, o questionamento não é para negar a inserção de toda e qualquer tecnologia no ambiente escolar, mas esclarecer as preocupações, as regulações e lacunas de cada tipo específico de tecnologia. A diferenciação permite o debate correto e as devidas escolhas de políticas de educação.
E como se entende que o reconhecimento facial não apresenta fins pedagógicos e que sua finalidade principal está relacionada à segurança e controle de ambientes, conclui-se que se trata de uma tecnologia de vigilância, cujo uso tem sido questionado mundialmente e da qual emergem ´denúncias de vieses discriminatórios e questões relacionadas à segurança, à transparência e à eficácia do sistema´. Como o público-alvo são crianças e adolescentes, o assunto é ainda mais complexo.
O relatório também considera que – ainda assim – a tecnologia deve levar em conta o uso responsável e afinado aos direitos humanos, sempre respeitando questões éticas, regulatórias e protetivas aos direitos e melhor interesse dos menores.
Assim, na adoção desta e de outras tecnologias no ambiente escolar, recomenda-se que o poder público leve em consideração:
Tecnologias de educação e tecnologias de vigilância: a capacitação de gestores públicos para diferenciar os diferentes tipos de ferramentas tecnológicas;
Análise de contexto: produção de análise prévia e de relatórios de impacto à proteção de dados, aos direitos humanos, dando ênfase aos potenciais discriminatórios que podem estar contidos no uso de tecnologias específicas;
Participação e gestão democrática: cooperação entre diferentes setores da sociedade, com participação de corpos docente e discente;
Aprimoramento dos mecanismos de transparência: respostas céleres e completas aos pedidos de LAI, divulgação de Política de Privacidade;
Uso de software livre;
Capacitação e letramento digital e tecnológico para gestores públicos e para educadores(as).
O uso do reconhecimento facial não é devidamente regulamentado no país. Existem projetos de lei sobre o tema, mas nada concreto. Hoje podemos contar com a Lei Geral de Proteção de Dados para pautar a questão do tratamento dos dados coletados; são regras gerais importantes, mas não há ainda nada mais específico sobre o uso do reconhecimento facial em instituições de ensino.
Enquanto existe esta lacuna normativa, é preciso que as instituições – ao fazer uso da tecnologia – se preocupe primeiro com a segurança dos dados. É necessário ter detalhes sobre como ocorrem os armazenamentos dos dados dos alunos e a devida qualificação dos operadores dos sistemas. É preciso muito cuidado com vazamentos e com o uso indevido das imagens de crianças e adolescentes.
Acima de tudo, é preciso cuidar do viés discriminatório que a tecnologia de reconhecimento facial pode acarretar e da possibilidade de ocorrência de muitos tipos de infração de direitos humanos e da privacidade do estudante. Quanto mais dados as instituições coletarem, maior será o potencial de danos reais para as pessoas. Reduzindo a quantidade dos dados coletados, reduz-se a possibilidade da má utilização.
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