Em 2023, diversos cursos de Medicina poderiam ter sido inaugurados, pois, com ótimas avaliações, já haviam alcançado o conceito de excelência nas verificações realizadas pelo Ministério da Educação. Esses cursos originaram-se de protocolos estabelecidos por meio de decisões judiciais durante a moratória de cinco anos imposta pela União, sendo excepcionalmente validados pela Ação Declaratória de Constitucionalidade 81 (ADC 81), cujo mérito foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2024.
Isso ocorre em meio a uma crise de disponibilidade de profissionais no país, como relatado pela imprensa em Brasília, onde o Governador afirmou, em março de 2024 que "Nós não encontramos esses profissionais para contratar. Para vocês terem uma ideia, de uns 60 médicos que nós convocamos no mês passado, somente oito assumiram na rede pública. Então, é um problema muito sério. Nós precisamos encontrar uma maneira (de resolver)".
A escassez ocorre até em municípios como São Paulo, onde existe um problema de desigualdade no atendimento médico. Em reportagem do Jornal Folha de São Paulo, uma moradora do distrito de Anhanguera, na subprefeitura de Perus, reclamou: “Lidamos com falta de médicos e muita espera no atendimento. Às vezes vamos à farmácia pegar medicamento e não tem". E esse tipo de reclamação, especialmente por parte da população mais carente, não parece ser exceção no Brasil. De fato, a matéria retrata o local como o “distrito onde se vive menos em SP”.
Os cursos indeferidos são resultado de uma política restritiva da União, uma linha de pensamento que despreza as avaliações in loco e os conceitos obtidos pelos projetos em detrimento de critérios recentemente criados. Aparentemente, tudo se baseia na ideia de que mais cursos em cidades como Brasília ou São Paulo, seriam um problema terrível para a sociedade, não uma contribuição para reduzir a escassez de médicos no país.
A partir desse viés, o Ministério da Educação adotou uma postura regulatória muito restritiva, publicando três portarias em 2023 que complicaram o processo de autorização de cursos. A Portaria 397, de setembro, introduziu o “indeferimento sumário”, cancelando visitas in loco agendadas, gerando prejuízos às instituições e desatando questionamentos judiciais da primeira instância até o STF. Em novembro, a Portaria 421 suprimiu essa forma de indeferimento e o Ministério remarcou as visitas. Porém, mesmo depois do pronunciamento favorável do Judiciário a respeito dessa mudança, a norma foi revogada e substituída pela Portaria 531, vigente até hoje.
A situação se agravou com a Nota Técnica 81, que acompanhava a Portaria 531 e introduziu critérios como a limitação baseada em vagas e a “necessidade social” baseada na média de 3,73 médicos por mil habitantes no município do curso. Esse documento levou ao indeferimento de mais de 50% dos pedidos de abertura de cursos e de percentual equivalente de vagas nos cursos aprovados, criando um ambiente de incerteza e frustração, especialmente para instituições que investiram recursos significativos em seus projetos.
Diante disso, algumas instituições recorreram ao Conselho Nacional de Educação e ao Judiciário, alegando ilegalidades nas portarias e retroatividade indevida. Questionaram ainda a restrição à análise municipal, que desconsiderou a dimensão regional e violou o princípio da legalidade, gerando conflitos entre normas ministeriais e a legislação indicada pelo STF.
Embora algumas liminares e sentenças favoráveis tenham afastado a aplicação da Portaria 531 e das Notas Técnicas com a limitação de análise ao município, a situação não se resolveu completamente. A União, insatisfeita com essas decisões judiciais, passou a buscar maneiras de contornar as liminares e gerou ainda mais insegurança jurídica.
Em alguns casos foi alegado o cumprimento das decisões judiciais, mesmo sem aplicar as regras específicas da época do protocolo dos pedidos. Houve ocasiões em que foi usada a regra de aumento de vagas; houve situações nas quais o número de médicos por mil habitantes foi reduzido para 2,5 e aplicado a regiões de saúde; e a estratégia mais recente, empregada na última semana, foi o uso da Portaria 397, que já está revogada. O objetivo era sempre manter o indeferimento e simular o cumprimento das ordens judiciais.
Sem demagogia ou mesmo sem criar escusas para chicanas feitas por qualquer um dos envolvidos nos processos de medicina, é preciso evitar a normalização de condutas e argumentos assim.
Agora, a grande esperança está no Conselho Nacional de Educação, que, após recente decisão judicial reforçando as regras determinadas pelo STF, deverá decidir sem aplicar as normas e notas técnicas da União que vinham sendo questionadas. Sem essas balizas ilegais, o CNE tem a oportunidade de reimplantar uma política pública eficiente, que não subjugue a qualidade do ensino médico a critérios retroativos e incoerentes. Ao assumir essa posição, o CNE poderá restaurar a confiança nas avaliações feitas e promover o acesso a uma educação de qualidade, sem os riscos de corporativismo ou de quebra da ordem jurídica.
O papel do CNE é crucial, pois o Brasil vive um cenário em que a elitização do ensino médico, o aumento das mensalidades e a migração de estudantes para o exterior têm se tornado uma realidade cada vez mais presente. As decisões sobre os cursos de medicina, com base em critérios duvidosos e normas questionáveis, têm contribuído para aumentar a desigualdade no acesso à educação médica, além de ter o potencial de gerar impactos negativos para o sistema público de saúde, no médio e no longo prazo.
Em um contexto mais amplo, é fundamental que o Brasil observe o futuro do ensino de Medicina com um olhar sensível e pragmático, focado na formação de profissionais bem-preparados e no acesso à educação e a saúde. A regulação do MEC, indispensável para atestar a qualidade dos cursos, não pode ser reduzida a uma “política de indeferimentos”, especialmente em um setor de ensino tão concentrado e desigual.
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