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Edgar Jacobs

AGU reconhece direito dos estudantes de cursos de Medicina criados a partir de decisões judiciais

Por Edgar Jacobs


Para leigos ou mesmo para os profissionais do Direito é difícil compreender o motivo do Ministério da Educação sempre refutar a legalidade de cursos que ele mesmo avaliou, às vezes com conceito máximo, somente em razão de divergir da forma como os procedimentos de autorização foram iniciados. Isto tem ocorrido porque o MEC insiste em dizer que o chamamento público do Programa Mais Médicos (PMM) é a única forma de iniciar esse tipo de procedimento.


E, pior, faz isso apesar do chamamento público ter ficado suspenso por 5 anos e desconsiderando que os processos que refuta iniciaram a partir de decisões judiciais bem fundamentadas. Agindo assim perdeu a oportunidade de constatar que a política pública de valorização das cidades mais carentes tem efeitos muito melhores quando acontece simultaneamente à iniciativa privada ampla, mas bem regulada.


Agora, a União deu o primeiro passo para mudar essa postura radical. Por meio da AGU, se manifestou em um dos processos judiciais mais importantes sobre o tema, a ADC 81, que tramita no Supremo Tribunal Federal. Lá, sugeriu que em uma eventual decisão cautelar do STF deve ser incluída uma ressalva que assegure aos alunos já matriculados nos cursos autorizados por essa via “…a conclusão da graduação, sem prejuízo de que o Ministério da Educação exerça o devido poder fiscalizatório”.


Num só pedido a União deixou entrever que os cursos autorizados a partir de decisões judiciais:


(1) têm condição de formar graduados em Medicina; e

(2) não escapam ao poder fiscalizatório do MEC.


Essa manifestação ocorreu sob pretexto de um fato novo: a Portaria 650, de 5 de abril de 2023. Esta norma reabriu os chamamentos públicos e a União argumenta que agora foi retomada sua política pública que visa combater o “…problema de distribuição anti-isonômica ao longo do vasto território nacional”.


No documento, além da admissão de validade dos cursos, já citada, a defesa da União tenta obter uma medida cautelar suspendendo os processos judiciais sobre autorização de cursos de Medicina em andamento. Nesse ponto, a petição não demonstra a mesma simplicidade e clareza de argumentação.


Primeiro porque, no mérito, não demonstra que os processos a serem suspensos são iguais ou mesmo que têm fundamento similar ao discutido na ação constitucional na qual a petição foi juntada. De fato, muitas ações judiciais não discutem a constitucionalidade tratada na ação do STF e entre elas há bastante diferença.


Ainda no mérito, o próprio ato normativo mencionado na petição faz prova contra seus argumentos. Enquanto a petição afirma que o escopo do chamamento “…consiste em que os editais supram os locais com maior carência de médicos, associando os novos profissionais formados a suas raízes, contribuindo para a diminuição da densidade de médicos longe do estado ou cidade natal”, a Portaria 650/2023 cria uma segunda hipótese de abertura de cursos que independe de necessidade social. Essa nova hipótese, fundada na existência de “estrutura de serviços conexos à saúde e à formação médica” nada mais é que um sistema baseado em avaliação e qualidade, tal e qual o autorizado por decisões judiciais.


No plano dos fatos, a petição também é contraditória, ao tentar usar números e gráficos para construir a narrativa de que os cursos criados por decisões judiciais aumentaram a desigualdade e geraram “…verdadeiros ‘desertos médicos’, com áreas e municípios desassistidos…”. O dado concreto é que de 2014 até 2023 o Mais Médicos criou 5529 vagas, ao passo que as decisões judiciais totalizam 1035. Ou seja, se há um problema de distribuição de médicos desde aquele ano, existe uma probabilidade 5 vezes maior desse problema ter sido gerado ou agravado pelo Programa Mais Médicos, não por decisões judiciais. A AGU omite, inclusive, que a maior parte dos processos de autorização de cursos de Medicina em tramitação por força de decisões judiciais encontram-se em localidades com vagas disponíveis, critério utilizado pelo próprio MEC para deferir ou indeferir os pedidos.


Tentando extrair argumentos dos dados, a petição também faz um exercício de multiplicação do número de pedidos pela via judicial vezes o número de vagas para concluir que milhares de vagas serão abertas. Esta conta, entretanto, desconsidera o fato de que entre o pedido judicial e a Portaria de autorização de curso há um rigoroso filtro, um processo regulatório cuja avaliação é conduzida pelo próprio MEC. Dessa maneira, só existirá um aumento expressivo de vagas se, antes, o Ministério validar a qualidade de cada um dos cursos e a viabilidade dos pedidos. Enfim, o fato concreto é que somente 11 cursos surgiram a partir de decisões judiciais, enquanto o Mais Médicos, apenas entre 2014 e 2018, abriu 62 cursos.


Ainda no campo dos fatos o que se observa é uma omissão importante, pois em momento algum foi mencionado que os editais geraram uma expressiva concentração econômica no setor, como atestou o recente estudo “A Demografia Médica no Brasil 2023”: “Apenas quatro grupos empresariais da educação concentravam, juntos, cerca de 90% das vagas privadas de medicina no Brasil em 2022.”[1]. Esse, certamente, deverá ser um problema enfrentado pelos futuros editais do PMM, afinal o TCU já havia firmado parecer técnico sobre o problema concorrencial do Programa. Se a petição tratasse desse assunto, seria ainda mais difícil concluir que os processos judiciais devem parar.


Por fim, existem dois problemas de ordem processual no pedido da União. O primeiro deles é que a AGU nunca propôs uma suspensão de tutela perante os Tribunais Federais e o segundo é que o fato “novo” – a Portaria 650/2023 – de fato não é nenhuma novidade.


Quanto à suspensão de tutela, a defesa da União, na audiência pública do processo, admitiu expressamente que as decisões judiciais apenas iniciam o processo de autorização e não geram, por si só, nenhum risco. Sobre a falta de inovação, o que pode ser dito é que desde a Portaria 328/2018 já era certo que os editais do Programa Mais Médicos voltariam em 2023. Nada de novo, portanto, na Portaria 650/2023 que confirma o que estava previsto há 5 anos.


Tecnicamente, não há o denominado periculum in mora e um pedido cautelar neste momento perde totalmente o sentido. Sem esses requisitos, enfim, a cautelar não deve ser concedida.


Dessa forma, o que merece destaque é a postura ativa e altiva da AGU, que de certa forma reconhece os limites das teses mais radicais de União e dá o primeiro passo para validar os cursos que foram e estão sendo criados a partir das decisões judiciais.

[1] https://www.fm.usp.br/fmusp/conteudo/DemografiaMedica2023.pdf.



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