Desde o início das discussões judiciais acerca da autorização de cursos de medicina, sempre sustentamos a crença de que esta questão envolve demandas estruturais. Nesse sentido, não estamos apenas diante de um fenômeno de judicialização fomentado por interesses privados, mas sim de um problema mais amplo. Antes da primeira decisão do STF, em agosto de 2023, afirmamos o seguinte:
"Diversas ações judiciais surgiram porque o problema, efetivamente, é estrutural: trata-se da distorção na oferta de vagas em cursos de medicina, uma falha sistêmica que afeta cada instituição de ensino de maneira distinta. (...)
Conforme Didier Jr. et al., o: “…problema estrutural se define pela existência de um estado de desconformidade estruturada”, o que é mais amplo que uma ilegalidade ou mesmo uma inconstitucionalidade pontual. Para tentar solucionar esse tipo de problema são necessários processos estruturais, nos quais, em linhas gerais, “…busca-se remover o estado de desconformidade, promovendo uma transição para o estado de conformidade…”".
Essa questão não escapou à atenção do relator da ADC 81, que, na sua decisão de ratificação da cautelar, declarou:
"A ação declaratória de constitucionalidade nº 81 foi deflagrada a partir de cenário de litigiosidade judicial, marcado pelo deferimento de liminares em favor de instituições de ensino superior que determinavam a análise, pelo Ministério da Educação, de pedidos de abertura de cursos de medicina com base na Lei 10.861/2004.
Essa situação perdurou por anos, especialmente diante da inércia da Advocacia-Geral da União em combater essas decisões liminares – evidenciada na Audiência Pública – e da própria duração irrazoável da moratória". (Ênfase nossa)
Desde 2012, o Brasil não recebia protocolo para autorização de novos cursos de medicina e a partir de 2018 não implementava nem mesmo sua política de chamamento. Consequentemente, o custo das mensalidades aumentava, impedindo os estudantes de seguir suas carreiras ou, em situações ainda mais drásticas, obrigando-os a estudar no exterior. Percebendo essa demanda e a falha de governo, as instituições buscaram uma reforma estrutural a partir das regras gerais da Constituição de 1988.
Isso ocorreu porque apesar do discurso oficial sobra a necessidade de estudos – na verdade, de 5 anos de estudos! – o que se observou é que todas as travas serviram apenas para barrar o crescimento do setor. Nesse sentido, estava claro que havia sido criada uma distorção concorrencial, que atingia não apenas os estudantes, mas as instituições de ensino.
Mas mesmo diante do desequilíbrio criado pelo Poder Executivo, ainda existem alegações de que o crescimento das decisões judiciais decorreu de interesses econômicos. A afirmação não deixa de ser verdadeira; muitos investimentos são necessários para abrir novos cursos e há expectativas de lucro. Porém, ela não reflete o que ocorreu.
Além disso, as externalidades positivas do litígio criado são inegáveis: os alunos teriam mais opções e preços mais acessíveis, o Sistema Único de Saúde (SUS) teria mais estudantes e profissionais disponíveis. Além disso, as instituições ganhariam sustentabilidade e a ampliação das vagas de medicina apenas compensaria a moratória do MEC. Todos sairiam ganhando e, se o MEC exercesse o controle da qualidade, ninguém perderia. Isso, por definição, é um exemplo de eficiência — o "ótimo de Pareto". Portanto, os novos cursos e as decisões judiciais podem também ser considerados como uma solução criada de baixo para cima, uma forma de reestruturar o que não funcionava bem.
As duas etapas para a solução das demandas estruturais.
Como descrito acima, diante da falha sistêmica, a litigiosidade identificada pelo STF é um conjunto de demandas estruturais. Esse tipo de demanda, ainda segundo o respeitado processualista baiano Fredie Didier Jr. ocorre em duas fases. Primeiro, há a “constatação do estado de desconformidade e decisão estrutural que estabelece uma meta a ser atingida (um novo estado de coisas)”. Posteriormente, a “implementação da meta estabelecida na decisão estrutural”. Observar a existência dessa duplicidade ajuda a perceber que:
“… a decisão estrutural não exaure a função jurisdicional. Ela apenas dá início àquela que, provavelmente, é a fase mais duradoura do processo estrutural, marcada pela participação efetiva do juiz (e, naturalmente, das partes e de outros sujeitos) para a implementação do novo estado de coisas”.
A decisão do STF de 7 de agosto de 2023, embora seja uma cautelar, já possui caráter de decisão estrutural e indica um novo estado de coisas. Três outros ministros já manifestaram consenso sobre o conteúdo principal dessa decisão, divergindo apenas quanto à modulação dos efeitos. Os votos existentes, inclusive, já indicaram a conversão da cautelar em decisão definitiva.
Apesar disso, o Ministério da Educação demonstrou resistência à implementação da transição decidida pelo STF. As três edições de um suposto padrão decisório em apenas dois meses (Portarias 397, 421 e 531) foram tão restritivas que o próprio Tribunal teve que intervir nesse período. Por outro lado, o MEC também mostrou falhas na implementação do "novo estado de coisas", adiando repetidamente o seu edital de chamamento público. Dessa forma, nada mudou em relação aos cursos de medicina.
Para o próximo ano, espera-se uma união de esforços, do Poder Judiciário, do Poder Executivo e das Instituições de Ensino. Essa cooperação não seria inédita, ocorreu, por exemplo, quando foi implementada a decisão da ADIN 2051. O Ministério da Educação, o STF e as Instituições colaboraram para realinhar a oferta educacional no estado de Minas Gerais. Na época, assim como agora, a sugestão de uma modulação de efeitos da decisão constitucional foi feita pelo Ilustre Ministro Gilmar Mendes. Esse é um bom indicativo, pois a experiência do julgador é essencial para lidar com problemas assim tão complexos.
Enfim, há expectativa de que a resistência diminua e o MEC possa ajudar a resolver o problema estrutural que existe no setor. Lobbies corporativos, interesses individuais e erros do Poder Público criaram uma falha evidente e todos precisam reconhecer que não há uma judicialização perversa e sem sentido, mas um problema na estrutura da educação médica. Um problema que só pode ser resolvido com mútua cooperação.
Sobre a modulação de efeitos da decisão do STF e a mudança no setor educacional.
A segunda fase das decisões estruturais é a implementação de uma meta ou de um novo "estado de coisas". Aqui, a meta é um rearranjo na oferta de cursos de medicina. Um rearranjo que não retome apenas a Lei 12.871/2013, mas que reconheça os problemas citados na cautelar do STF. Cinco anos sem editais de chamamento não são um fato desprezível, assim como não o é o volume de ações judiciais, liminares e sentenças proferidas nesse período. Agora, é preciso que o Tribunal observe os fatos e a conduta da Administração Pública para “implementar a decisão estrutural”.
O Tribunal pode fazer isso aprimorando a definição do marco temporal para a modulação e ponderando sobre os atrasos do MEC, que se nega a cumprir a decisão do STF mesmo depois 100 dias úteis da primeira cautelar.
Os dois temas — a demora do MEC e o marco temporal da modulação — estão interligados. A escolha de uma fase específica do procedimento administrativo como marco temporal é ousada e coerente com a decisão do STF. Demonstra, inclusive, conhecimento da tramitação das autorizações. No entanto, a realidade é que o Ministério não atua com celeridade e isonomia nesses processos.
Há casos nos quais o Órgão demorou mais de 3 meses para abrir o sistema, retardando o protocolo dos documentos. Noutros, ele demorou 6 meses para analisar documentos, normalmente revisados em menos de 30 dias. Mas o mais aviltante é que existem casos nos quais os processos foram analisados e assinaturas de servidores estavam pendentes, na data da decisão do STF. Atrasos e omissões, assim, tornarão a métrica escolhida na cautelar, o fluxo dos processos administrativos, imprecisa e até mesmo injusta. Afinal, não há nenhuma outra forma de descrever o prejuízo gerado pela falta de uma simples assinatura, senão como injustiça.
Ademais, a ADC 81 trata de processos judiciais, de litigiosidade, não sobre fluxos administrativos. Por isso, seus efeitos primários e secundários deveriam estar vinculados aos procedimentos no Poder Judiciário. Isso quer dizer, se a decisão principal da ação constitucional finalizará a litigiosidade sobre o tema, sua modulação deveria, teoricamente, abordar quais processos judiciais prosseguirão, ou não.
Uma modulação assim, se assemelharia aos diversos julgados nos quais a Suprema Corte limita os efeitos de ações constitucionais em face de ações comuns ajuizadas até uma determinada data (ADI 6145 ED; ADI 7124; ADI 2041 ED; ADI 7117; ADI 7112; ADI 7130; RE 559943; ADPF 512, dentre outras). Por isso, seria processualmente viável.
Essa opção também seria coerente com o posicionamento do próprio MEC. Em sua recente Portaria 531, o Órgão usa como marco de seu critério cronológico a data da propositura das ações (Art. 8º, § 11). Dessa forma, mesmo sendo muito fundamentada e ponderada a escolha inicial, o STF pode considerar a conduta do MEC — registrada em seus reiterados atrasos e até em sua nova norma — para alterar o parâmetro de modulação. O novo marco temporal deveria ser a data da concessão da cautelar, dia 07 de agosto de 2023.
Novos cursos, todos respeitando o Programa Mais Médicos.
Por fim, mesmo que esse novo marco temporal acabe ampliando o número de processos judiciais afetados, o interesse social em cursos de qualidade continuaria protegido. Afinal, a decisão cautelar, sabiamente, impôs o cumprimento das condições previstas na Lei do Mais Médicos, o que evitará novos cursos de medicina aprovados à revelia das principais regras do Programa.
Na realidade, a solução para os cursos judicializados e sua adequação ao Programa Mais Médicos deveria ser uma meta de curtíssimo prazo, pois esta questão afeta, e muito, o chamamento público retomado em 2023. Dentre os motivos dos dois adiamentos de apresentação das propostas já ocorridos, certamente está a questão da sobreposição de oferta e isso poderia ser resolvido com a análise das autorizações pendentes. Seria, então, apenas uma questão de ordem, primeiro a análise dos processos sub judice logo depois a implementação dos editais.
Com a aplicação de um critério que só depende de um ato praticado pelo litigantes, o protocolo da ação judicial, e a colaboração do MEC por meio de uma regulação eficiente, as demandas judiciais seriam rápida e definitivamente extintas, abrindo espaço para um novo momento na educação médica brasileira.
Em resumo, para resolver o problema estrutural das autorizações dos cursos de medicina, ainda é necessário dar alguns passos. Mas se o MEC decidir colaborar e o STF aprimorar ainda mais sua decisão, a questão dos cursos abertos com base em decisões judiciais poderá ser resolvida em breve, abrindo caminho, inclusive, para um chamamento público mais eficiente.
Aproveitamos este último artigo do ano para desejar a todos os leitores um FELIZ ANO NOVO, com muitas alegrias e realizações.
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