Nos últimos dois governos, mais especificamente a partir de 2016, o país caminhou no desenho da arquitetura curricular de um Novo Ensino Médio. Neste período, as maiores preocupações de alguns profissionais da Educação giraram em torno do itinerário formativo técnico profissional. Para eles, se não houvesse uma discussão profunda sobre a qualidade da oferta do itinerário formativo profissionalizante, teríamos a formação em massa de profissionais sem qualquer conexão com a demanda do mercado de trabalho.
Infelizmente, feita a reforma, muitos estudiosos entenderam que a proposta dos itinerários, tal como consta do novo programa, agrava as desigualdades do país no acesso à educação de qualidade, na medida em que caberá aos sistemas de ensino definir o que eles vão e o que não vão oferecer aos estudantes. Por exemplo, alunos de cidades menores e de escolas desassistidas não terão acesso a alguns dos conteúdos hoje considerados obrigatórios para todos.
Os críticos concluíram que se antes já tínhamos um sério problema do ponto de vista curricular, de um conteudismo esvaziado de sentido - contra o qual precisávamos lutar - o novo modelo cassaria de vez os direitos educacionais.
E esta provável precarização do ensino de nível médio infelizmente tem alvo: é aquele que frequenta as escolas públicas, em especial o das regiões e estados mais pobres do país. A mudança, por sua vez, teria sido feita apenas para cortar gastos, o que é uma pena, pois é óbvio que não se melhora a Educação sem investimento.
Protestos
Desde o ano passado entidades educacionais começaram a se manifestar publicamente solicitando a abertura de um amplo processo de discussão sobre esta etapa da Educação Básica apoiado nos princípios estabelecidos na LDB de 1996 e nas discussões e construções teóricas acumuladas no campo progressista e democrático.
Uma Carta Aberta à sociedade foi divulgada em 08 de junho de 2022, na qual constam 10 pontos argumentativos que justificam o pedido; até agora, já em março de 2023, pelo menos 300 entidades educacionais aderiram à solicitação de revogação do Novo Ensino Médio.
A Carta
A Carta Aberta, apresentada inicialmente pela Rede Escola Pública e Universidade, um grupo de professores e pesquisadores de universidades públicas paulistas, explica que, desde o ano de 2003, sabíamos estar diante da necessidade de construir um currículo menos fragmentado, mais integrado e capaz de permitir uma compreensão de um mundo cada vez mais complexo. Houve, então, tentativas de reformulação curricular, mas a Reforma que se acabou fazendo chegou na contramão de tudo o que vinha sendo encaminhado. Ela foi apresentada como Medida Provisória (MP 746/2016) poucos meses após a posse de Michel Temer como Presidente da República e, na ocasião, de acordo com a Carta, o então presidente abortou o (ainda insuficiente) processo de discussão sobre o Ensino Médio iniciado na Câmara dos Deputados em 2012.
A Carta Aberta informa que a MP foi duramente criticada como meio para realização de uma reforma educacional de tamanha magnitude, mas, apesar dos protestos – inclusive com um intenso movimento de ocupações estudantis nas escolas de Ensino Médio e nas universidades públicas em 19 estados da federação – em 2017 a MP 746 foi convertida na Lei 13.415/2017, e o governo eleito em 2018 terminou aprovando os documentos legais que dariam sua sustentação normativa.
Desta forma deu-se sua implementação.
O governo Temer justificava a normativa alegando que o Ensino Médio seria mais atrativo aos jovens, permitindo que estes pudessem escolher itinerários formativos diferenciados; que seria ampliada a oferta de ensino em tempo integral; e que haveria aumento do aspecto profissionalizante. Contudo, os críticos lamentam profundamente a eliminação do currículo das disciplinas ligadas aos campos científicos, culturais e artísticos tradicionais da docência profissional em nível médio, o que desmonta as possibilidades de formação científica e humanística principalmente da juventude que estuda nas escolas públicas.
Ainda, dizem ser uma enganação a tão falada liberdade de escolha de disciplinas por parte dos estudantes, visto que se restringe aos itinerários formativos disponibilizados pela escola, e que não abrangem a totalidade de possibilidades das redes de ensino.
Neste caso, obviamente, sequer há a opção de mudança de escola para a maioria dos estudantes, especialmente ao se considerar que temos aproximadamente três mil municípios do país com uma única escola pública de Ensino Médio.
Consequências da reforma do ensino médio de acordo com as entidades
A primeira consequência apontada pela Carta Aberta é que a reforma do Ensino Médio fragilizaria o próprio conceito de Ensino Médio como parte da educação básica assegurado na LDB, na medida em que esta etapa deixa de ser uma formação geral para todos, se tornando (ainda mais) elitista e estratificado. No caso, a integração do Ensino Médio à educação básica foi uma medida importante para democratizar esta etapa, juntamente com a garantia de oferta do EJA, agora negligenciados pela Lei 13.415/2017.
Ampliaria a adoção do modelo de Ensino Médio em Tempo Integral sem garantir investimentos suficientes para dar condições de acesso e permanência dos estudantes, excluindo das escolas de jornada ampliada estudantes trabalhadores e aqueles de nível socioeconômico mais baixo, bem como estimulando o fechamento de classes do período noturno e da EJA.
Induziria jovens de escolas públicas a cursarem itinerários de qualificação profissional de baixa complexidade e ofertados de maneira precária em escolas sem infraestrutura, vide o Projeto de Lei 6.494/2019 que tramita na Câmara dos Deputados e pretende alterar a LDB, propondo o aproveitamento “das horas de trabalho em aprendizagem para efeitos de integralização da carga horária do Ensino Médio até o limite de 200 horas por ano”.
Colocaria em risco o modelo de Ensino Médio Integrado praticado pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, um modelo que adota cotas sociais e raciais de ingresso desde 2012 e que apresenta bons resultados em avaliações de larga escala como o PISA. Isto porque a Lei 13.415/2017 rebaixa a educação profissional à condição de “itinerário formativo”, dissociando a formação geral básica da educação profissional.
Aumentaria de forma considerável o número de componentes curriculares e acentuaria a fragmentação, sendo que uma das justificativas para a Reforma do Ensino Médio era justamente a necessidade de diminuir o número de disciplinas escolares obrigatórias.
Desregulamentaria a profissão docente, de duas maneiras:
Ampliaria e acentuaria o processo de desescolarização no país, terceirizando partes da formação escolar para agentes de fora do sistema educacional (empresas, institutos empresariais, organizações sociais, associações e indivíduos sem qualificação profissional para atividades letivas).
De acordo com a Carta Aberta, a Reforma comprometeria a qualidade do ensino público por meio da oferta massiva de Educação a Distância. Não em razão de ineficiência do método, no caso, mas por conta da ainda imensa exclusão digital da maioria da população brasileira.
Segmentaria e aprofundaria as desigualdades educacionais – e, por conseguinte, as desigualdades sociais –, pois faria uma diversificação curricular por meio de itinerários formativos que privariam os estudantes do acesso a conhecimentos básicos necessários à sua formação.
Por fim, delegaria aos sistemas de ensino as formas e até a opção pelo cumprimento dos objetivos, tornando ainda mais distante a consolidação de um Sistema Nacional de Educação, como determina o Plano Nacional de Educação 2014-2024.
São estas as razões que levaram mais de 300 entidades educativas a solicitarem que o governo revogue a reforma do ensino médio e inicie um amplo processo de discussão sobre esta tão importante etapa da Educação Básica. Seus requerimentos se apoiam nos princípios definidos na LDB de 1996 e nas construções teóricas acumuladas no campo ao longo dos anos. Elas esperam, acima de tudo, que exista um processo participativo e democrático.
Os signatários da Carta – conduzida pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu), - são grupos de pesquisa, sindicatos, associações científicas e de classe do campo educacional que defendem que não há remendo para a reforma.
Chamado a se pronunciar, o Ministério da Educação anunciou que prepara a convocação de um grupo de discussão sobre o assunto.
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