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65 mil brasileiros estudam medicina fora, e AGU admite: 95% das regiões de saúde têm média insuficiente de médicos

Atualizado: 18 de fev.

A regulação dos cursos de Medicina no Brasil é um tema delicado, que exige uma abordagem equilibrada entre a necessidade social e a garantia da qualidade do ensino. Nesse contexto, a Lei 12.871/2013 estabeleceu um critério claro: a análise da necessidade de novos cursos deve considerar não apenas o município-sede, mas também os municípios do entorno, ou seja, a região de saúde. Essa regra  está alinhada com a lógica do Sistema Único de Saúde (SUS), que organiza a oferta de serviços médicos de forma regionalizada.

O tema é importante, pois mesmo considerando a recente tendência no CNE de considerar, a priori, lícita a Portaria SERES/MEC 531/2023, seria importante reconhecer que ela restringiu a análise da necessidade social apenas ao município onde o curso será implantado. Essa escolha provoca a maior parte da celeuma judicial que ainda persiste sobre os cursos de medicina.


A Importância de uma Análise Ampla

No trabalho que desenvolvemos, buscamos sempre separar aspectos processuais e materiais da Portaria, destacando que há elementos da norma que contribuem para a decisão sobre os cursos, como a concessão prazo para a juntada de termos de adesão, que embora esbarre em barreiras políticas, fortalece a relação com os municípios da região de saúde.  Por outro lado, indo de encontro ao caráter de parceria da IES com toda a região de saúde, a opção por restringir a análise da necessidade social ao município-sede parece incoerente e ilegal.

A centralidade desse ponto se tornou ainda mais evidente quando, em um dos processos em que atuamos, a Advocacia-Geral da União (AGU) apresentou uma justificativa objetiva para essa mudança. Em sua defesa, a AGU afirmou que:

“Apenas 19 de um total de 450 Regiões de Saúde do Brasil, ou seja, apenas 4,22% das regiões de saúde do país, não atenderiam a um critério de necessidade social revisado, que considerasse regiões com média inferior a 3,73 médicos por mil habitantes.” (Contestação da União no processo n.º 1061697-82.2024.4.01.3400)

Esse dado confirma que a redução da análise para o município não foi uma necessidade técnica, mas sim uma escolha para limitar a abertura de novos cursos. A intenção pode ter sido a de conter uma possível expansão desordenada, mas ela ignora a legislação e a organização do SUS.


O Que os Números Realmente Mostram?

Ao contrário da percepção de que há cursos de Medicina em excesso, os números indicam que a demanda por formação médica continua alta. O elevado custo das mensalidades e a significativa migração de estudantes brasileiros para cursos no exterior são indícios claros de que ainda há espaço para a ampliação do ensino médico, desde que feito com qualidade.

São três problemas relacionados. As altas mensalidades dos cursos de Medicina no Brasil, que ultrapassam R$ 15.000,00, somadas à limitada oferta de vagas, dificultam o acesso à formação e incentivam a migração de estudantes para o exterior. Em 2018, o Ministério das Relações Exteriores estimou que mais de 65 mil brasileiros cursam Medicina fora do país (na Argentina, Paraguai e Bolívia), número que representa mais de um terço dos estudantes de Medicina registrados no último Censo da Educação Superior. Entre 2015 e 2022 o número de brasileiros que fazem medicina na Argentina quintuplicou, passando de 4000 para 20.000 estudantes. Hoje, o site do Revalida mostra um aumento, de 10 mil para cerca de 17 mil inscritos entre 2024 e 2025.."Estes dados não mostram um mercado equilibrado, muito menos um curso realmente acessível aos brasileiros.

Por outro lado, o argumento de que o aumento de cursos comprometeria a qualidade não se sustenta diante das avaliações do próprio MEC. Além disso, a análise econômica também demonstra que um ambiente mais competitivo favorece a inovação e a busca por excelência, beneficiando não apenas os estudantes, mas toda a sociedade.

Não existem informações sobre uma crise ou uma queda de qualidade relacionada ao aumento de cursos, mas existem dados de que o Brasil ainda não alcançou a excelência qualitativa na oferta de ensino médico. Até quem critica a abertura de novos cursos usa estatísticas atuais, o que de forma alguma implica em má qualidade dos projetos e cursos que ainda não foram implementados.


O posicionamento do CNE e a regionalização do SUS

O Conselho Nacional de Educação tem um papel essencial nesse debate. Recentemente, o Conselheiro André Lemos abordou com precisão a importância da análise regional:

É importante frisar que a Lei do Programa Mais Médicos foi estruturada com base em estudos e evidências que apontavam para uma grave escassez de médicos no Brasil, especialmente na Atenção Primária à Saúde. Este cenário de insuficiência de profissionais, com destaque para as regiões mais afastadas e desassistidas, exigia uma resposta efetiva e rápida.

Nesse contexto, ao considerar a análise da região de saúde, a lei procurou enfrentar diretamente essas lacunas, de modo que a criação de novos cursos superiores de Medicina se configurasse como uma resposta estratégica às necessidades emergentes das localidades com carência de médicos e serviços.

Além disso, a Lei do Programa Mais Médicos procurou promover a interiorização e a distribuição territorial das vagas para o curso superior de Medicina, alinhando-se ao princípio da regionalização do SUS e à necessidade de democratizar o acesso ao ensino médico, com vistas a melhorar a oferta de serviços de saúde no país. (Declaração de voto no Parecer CNE/CES 765/2024)

A Conselheira Luciane Ceretta também reforçou esse entendimento em seus votos. Ainda assim, o CNE segue dividido, com manifestações mais amplas e outras mais contidas sobre os impactos da Portaria SERES/MEC 531/2023.

Apesar desse debate interno — que respeitamos profundamente —, o fato é que a Lei 12.871/2013 não deixa dúvidas: a necessidade social deve ser avaliada considerando o município e sua região de saúde. De fato, é possível interpretar que própria AGU, ao mitigar a discussão técnica para afirmar que o problema seria o número de regiões seriam beneficiadas, acaba reconhecendo, ainda que por ato falho, que a análise regional é o critério mais adequado.


Caminhos para um Consenso

A melhor solução para esse impasse é reconhecer que a necessidade social deve ser avaliada conforme previsto na legislação, ou seja, no âmbito da região de saúde. Isso permitiria ao MEC e ao CNE manterem uma política regulatória consistente, garantindo que os cursos sejam autorizados onde realmente há demanda, sem comprometer a qualidade da formação médica.

Além disso, a preocupação com a eventual aprovação de um número elevado de novos cursos pode ser abordada de outra maneira. Se as regiões possuem menos de 3,73 médicos por mil habitantes, devem ser atendidas. Para isso, os cursos devem continuar sendo avaliados com rigor em relação à qualidade e infraestrutura, sem que se adote um limite geográfico arbitrário para analisar a necessidade social. Na prática, inclusive, muitos cursos foram indeferidos por critérios qualitativos, o que satisfaz até mesmo a matemática reducionista que as vezes tem sido defendida dentro e fora da Administração Pública.

O dado apresentado pela AGU — de que 431 regiões possuem menos de 3,73 médicos por mil habitantes — reforça que a carência de profissionais persiste em grande parte do país. Diante disso, restringir a análise apenas ao município representa não apenas um equívoco regulatório, mas também uma oportunidade perdida de fortalecer o atendimento médico em centenas de regiões de saúde.

Este é um momento estratégico para o MEC e o CNE. Há um caminho viável para reduzir a judicialização sobre os cursos de medicina e promover um consenso equilibrado entre todas as partes envolvidas. Enfim, o reconhecimento da análise regional como critério central pode evitar impasses jurídicos e, mais importante, contribuir para a construção de uma política pública de ensino médico mais eficaz e alinhada às necessidades reais da população.


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