Nova regulação da pós-graduação: avanços, riscos e o desafio da participação social
- Edgar Jacobs
- há 1 hora
- 6 min de leitura
O Conselho Nacional de Educação realizou, em 20 de outubro de 2025, reunião pública na qual foi lido o parecer da comissão que elabora uma nova resolução para regulamentar os cursos de especialização. Trata-se de uma iniciativa relevante e oportuna, coordenada pelo Conselheiro Celso Niskier e relatada pela Conselheira Mônica Sapucaia Machado.
O texto da proposta ainda não foi divulgado no site do CNE, tampouco houve convocação de audiência pública – aspectos que merecem aperfeiçoamento. Ainda assim, foi possível notar que a minuta lida na reunião extraordinária traz avanços relevantes. Entre eles, destaca-se a definição de um procedimento regulatório claro para o credenciamento exclusivo na pós-graduação (art. 3º) e a fixação do conteúdo mínimo e da obrigatoriedade do Projeto Pedagógico do Curso (art. 4º) – temas que há anos careciam de maior precisão normativa.
Outra boa escolha foi a manutenção do percentual mínimo de 30% de docentes com titulação stricto sensu, equilibrando o valor da experiência profissional com o rigor acadêmico. Como inovação, propõe-se que 50% do corpo docente possua vínculo jurídico com a instituição, medida que reforça a responsabilidade institucional e pode conferir estabilidade às ofertas, mas precisa ser compatibilizada com o momento de incerteza sobre contratações por meio de pessoas jurídicas.
Pontos de atenção
O texto, obtido por degravação eletrônica da reunião — e, portanto, sujeito a eventuais imprecisões de transcrição —, é claro, bem estruturado e demonstra cuidado técnico por parte dos autores. Ainda assim, há pontos que merecem debate e eventual revisão.
1. Restrição à especialização
A proposta limita-se aos cursos de especialização, deixando de fora outras modalidades expressamente previstas na Lei nº 9.394/1996, como o aperfeiçoamento (art. 44, III). O problema não é novo, mas mantê-lo representa uma limitação desnecessária.
Mesmo que a norma não trate diretamente de formatos contemporâneos – como MBAs, bootcamps ou fellowships –, seria desejável incluir o aperfeiçoamento, que, segundo precedentes do CNE, possui finalidade própria no sistema educacional: oferecer formação continuada de curta duração, voltada à atualização profissional. Ignorar essa modalidade perpetua uma lacuna normativa que poderia ser facilmente corrigida, fortalecendo a coerência e a completude do marco regulatório da pós-graduação.
2. Convênios e parcerias
O art. 2º, §2º já restringe as parcerias às instituições credenciadas, exigindo coautoria acadêmica, cogestão do corpo docente e responsabilidade solidária – elementos suficientes para garantir a integridade das ofertas e coibir relações com empresas não credenciadas.
O §3º, contudo, é um conjunto heterogêneo de restrições. Parte de seu conteúdo, como a proibição de “intermediação comercial” e de “subcontratação de gestão acadêmica”, pode se confundir com práticas lícitas e até desejáveis em parcerias entre instituições credenciadas, sobretudo quando envolvem divisão legítima de tarefas administrativas ou de apoio técnico sem perda de responsabilidade acadêmica.
Outra parte, porém, refere-se a condutas claramente irregulares – como a cessão de direitos do credenciamento ou a simulação de oferta por terceiros –, que já estariam vedadas indiretamente pelo próprio § 2º, ao limitar as parcerias a instituições formalmente credenciadas. O resultado é uma norma redundante, de difícil aplicação prática, que pode gerar insegurança jurídica e, paradoxalmente, restringir formas de cooperação legítimas.
3. Credenciamento exclusivo e natureza jurídica
O texto transcrito não fica inteiramente claro, mas o art. 3º, §1º aparenta restringir o credenciamento exclusivo às instituições sem fins lucrativos, excluindo, por consequência, as demais instituições privadas. Caso essa limitação realmente exista e seja mantida, ela parece inconstitucional, por violar o princípio da livre iniciativa (art. 170 da Constituição Federal) e o regime de liberdade de ensino previsto no art. 209.
Não há, nesse recorte, qualquer ganho objetivo para o interesse público. O que se deve exigir é qualidade acadêmica, e não a natureza jurídica da mantenedora.
Ao vedar a atuação de instituições privadas com fins econômicos, a norma cria uma barreira artificial e injustificável. A restrição é incompatível com a Lei nº 13.874/2019, que impõe ao Estado o dever de assegurar tratamento isonômico e de não restringir atividades legítimas sem fundamento técnico e proporcional. Essa limitação, além de desnecessária, desestimula projetos sérios e inovadores voltados à formação continuada e representa um retrocesso em relação à lógica constitucional de pluralidade e coexistência institucional.
4. Restrição à “linha de atuação principal”
O art. 6º restringe os cursos à “linha de atuação principal da instituição credenciada”. Essa limitação nega, em parte, o espírito criativo e inovador próprio da educação superior. Instituições de ensino se caracterizam pela capacidade de propor novos cursos e áreas emergentes, não pela mera reprodução de ofertas existentes. O dispositivo é compreensível para centros de pesquisa ou órgãos técnicos, mas inadequado para IES que buscam desenvolver novas frentes formativas.
Além disso, o termo “linha de atuação” é impreciso e pode gerar confusão. Na pós-graduação, os referenciais técnicos consagrados são as “áreas de conhecimento” da CAPES, voltadas à organização e avaliação acadêmica (em grande área, área, subárea e especialidade), e as categorias temáticas do CINE Brasil, baseadas na ISCED-F e utilizadas pelo INEP para fins estatísticos e regulatórios. Como cada sistema tem finalidades distintas – a CAPES, voltada à avaliação acadêmica, e o CINE, à padronização estatística –, é importante que a norma adote terminologia consistente com o contexto em que pretende atuar.
Se a restrição for mantida, deve-se definir claramente a qual classificação o texto se refere (CAPES ou CINE) para evitar interpretações contraditórias. Contudo, a solução mais equilibrada seria utilizar esse critério apenas como referência inicial para credenciamentos, e não como limitação permanente, preservando a liberdade de inovação e expansão das instituições.
5. Frequência mínima
O art. 8º da proposta impõe frequência mínima de 75%, espelhando a regra da educação básica. No ensino superior, porém, não há lei que fixe esse percentual – o art. 47, §3º, da LDB apenas determina a obrigatoriedade de frequência, sem definir número. Tentativas de transformar os 75% em norma para esse nível educacional, como o PLS 387/2007 e o PL 4831/2009, não chegaram a ser aprovadas.
O texto ainda é impreciso ao afirmar que o percentual vale para “a carga horária do curso e das atividades presenciais obrigatórias”. Não fica claro se o cálculo se aplica a cada disciplina, a cada módulo ou ao curso como um todo, o que pode gerar interpretações diferentes e exigências desiguais.
Na pós-graduação, o estudante é adulto e autônomo, capaz de gerir o próprio aprendizado. Por isso, a aplicação direta desse limite soa desajustada e pouco compatível com a lógica de flexibilidade e responsabilidade individual que marca a educação superior.
Nova norma avança, mas falta diálogo
Nenhum desses aspectos compromete o mérito da proposta, mas todos merecem atenção. Se o objetivo é atualizar a regulação, é natural que o processo também acolha ideias novas e diferentes visões sobre o que significa qualidade na pós-graduação.
Nesse contexto, chama atenção a ausência de audiências públicas e consultas abertas. Uma norma que redefine a formação de especialistas no país deveria ser discutida amplamente com instituições de ensino, conselhos profissionais e a sociedade civil. O precedente recente das normas sobre educação a distância (EaD) — cuja elaboração teve diálogo público limitado — mostrou como a falta de participação pode comprometer a legitimidade e a aceitação social das políticas educacionais.
O próprio Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADC nº 81, destacou – especialmente nos votos dos Ministros Gilmar Mendes e André Mendonça – a importância da participação social na formulação de políticas regulatórias. A transparência e a escuta pública podem tornar o processo mais longo, mas também o tornam mais legítimo, estável e menos sujeito à judicialização.
Em síntese, a nova norma representa um avanço, mas o processo de construção precisa acompanhar o mesmo nível de abertura e maturidade que se espera do sistema que pretende regular. O texto traz ganhos importantes na organização dos cursos de especialização, na procedimentalização regulatória e na qualificação da oferta, reforçando um movimento de modernização na educação superior.
Ainda assim, a forma como se elabora uma norma é tão relevante quanto o seu conteúdo. Um processo mais aberto, transparente e participativo não apenas fortaleceria a legitimidade da proposta, como também tornaria suas regras mais justas, estáveis e duradouras. Seria, em última análise, o melhor sinal de amadurecimento regulatório que o país poderia oferecer.

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