No dia 29 de setembro tivemos conhecimento da primeira sentença que se valeu da Lei Geral de Proteção de Dados para condenar a Cyrela, empresa do ramo imobiliário, a indenizar um cliente que teve informações pessoais enviadas a outras empresas sem o seu consentimento.
A decisão foi proferida pela juíza Tonia Yuka Koroku, da 13ª Vara Cível de São Paulo, estipulando a indenização pela violação de dispositivos da LGPD - Lei 13.709/19 —, além de direitos previstos pelo Código de Defesa do Consumidor e pela Constituição, como a honra, a privacidade, a autodeterminação informativa e a inviolabilidade da intimidade, o que gerou danos morais passíveis de indenização.
A ação
O autor celebrou com a ré Cyrela um instrumento contratual por meio do qual forneceu seus dados pessoais, dentre os quais nome, endereço, profissão, estado civil e autorizou, em relação ao tratamento desses dados, a inclusão em cadastro positivo.
Todavia, o autor, durante o período subsequente ao contrato, passou a ser assediado por diversas empresas; isso justamente pelo fato de ter firmado o instrumento contratual para a aquisição de unidade de apartamento.
Vários documentos constantes do processo confirmam que o autor do pedido de indenização recebeu contato de instituições financeiras, consórcios, empresas de arquitetura e de construção e fornecimento de mobiliário planejado pelo fato de ter adquirido o imóvel da construtora.
Tais interlocutores, como consta da sentença, sabiam do imóvel transacionado e um deles confirmou o compartilhamento dos dados quando provocado pelo cliente da construtora. Também houve produção de prova testemunhal.
Fato que o autor comprou um apartamento em novembro de 2018 e logo após começou a ser assediado por empresas que citavam sua recente aquisição.
A sentença
A juíza afirma que, além da LGPD, a empresa violou o Código de Defesa do Consumidor e vários dispositivos da Constituição Federal, dentre os quais aqueles que asseguram o respeito à dignidade, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos.
"O rol do artigo 5º da CF apresenta diversos direitos fundamentais, que devem ser garantidos e protegidos pelo Estado, bem como observados pelos particulares em suas relações, o que sequer demanda mediação pela via da legislação ordinária. São direitos fundamentais a honra, o nome, a imagem, a privacidade, a intimidade e a liberdade, o que é complementado pelo tratamento despendido pelas normas infraconstitucionais", afirma a magistrada.
A empresa, por sua vez, defendeu-se afirmando não ter responsabilidade sobre a violação dos dados e solicitou a condenação do cliente/consumidor por danos morais por meio de um pedido reconvencional, julgado improcedente.
Proteção de dados
Os direitos ligados à privacidade e à proteção dos dados não passaram a existir apenas com a LGPD, cujas sanções, a propósito, só estarão em vigor no ano que vem. Esse texto legal trouxe, sim, inovações no âmbito normativo, mas em relação a alguns direitos fundamentais houve apenas um agrupamento de normas já presentes – e há muito tempo - no ordenamento jurídico brasileiro.
A propósito, antes do vigor da LGPD já eram possíveis ações análogas com base no Código de Defesa do Consumidor, que possui regramentos sobre o vício na prestação de serviços.
Como já publicamos algumas vezes, o disposto na lei de dados acerca das sanções não substitui a aplicação de sanções administrativas, civis ou penais definidas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, por exemplo, ou em outras leis específicas, o que quer dizer que a LGPD prevê condutas sancionatórias apenas em âmbito administrativo.
As condutas pautadas pela LGPD podem se adequar a tipos penais determinados por outras leis e podem – no âmbito civil – serem alvo de ações de indenização por danos morais, como ocorreu no caso em análise.
Na interpretação da magistrada, enfim, a construtora feriu preceitos como a honra e a privacidade do cliente, violando sua intimidade ao não apenas repassar seus dados pessoais, mas também revelar detalhes sobre a compra do imóvel.
Além da indenização por danos morais, houve a condenação da construtora a não mais repassar os dados pessoais ou financeiros de seus clientes a terceiros, sob pena de multa de R$ 300 a cada contrato indevido cuja má utilização das informações seja confirmada.
Fundamentação
É interessante que a juíza fundamenta sua decisão também na LGPD e a ação é anterior à data em que a medida entrou em vigor. A parte condenada poderia recorrer argumentando que a LGPD não tem efeitos retroativos? A argumentação é esperada, mas, como mencionado, a LGPD não foi a única lei em referência. O Código de Defesa do Consumidor sustenta a sentença, que deixa claro não haver dúvida da relação de natureza consumerista entre as partes e um dos direitos fundamentais do consumidor é de acesso à informação adequada acerca dos serviços que lhes são postos à disposição.
A indenização que deverá ser paga pela Cyrela não tem nenhuma ligação com as punições que serão eventualmente aplicadas administrativamente pela ANPD; portanto, não tem nenhuma relação com retroatividade dos efeitos da LGPD.
Vê-se, portanto, que os referidos diplomas (CDC e LGPD) encontram-se em consonância com os princípios fundamentais da República expressos na Constituição Federal de 1988, especialmente o respeito à dignidade humana (art. 1º, III, CF/88), a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF/88) e a promoção do bem de todos sem preconceitos (art. 3º, IV, CF/88). Exsurge de tais valores o vetor que direciona a tutela dos direitos fundamentais como pilar inarredável do Estado Democrático de Direito, em que as garantias e os direitos individuais sequer são passíveis de serem infirmados ou reduzidos pelo Poder Constituinte Derivado (art. 60, § 4º, IV, CF/88).
O fornecedor de serviços, portanto, está livre para atuar na exploração do mercado de consumo, contudo, deverá fazê-lo tendo por baliza a função social da propriedade e dos contratos (art. 170, III, CF/88) e a proteção da parte hipossuficiente da relação. Condutas que violem direitos fundamentais e outros assegurados no ordenamento jurídico nacional são ilícitas (arts. 186, 187, 422 e 2.035, parágrafo único, Código Civil) e devem ser reprimidas e reparados os danos daí decorrentes. (Trecho da sentença proferida no Processo Digital nº: 1080233-94.2019.8.26.0100, da 13ª Vara Cível da Comarca de São Paulo)
Enfim, como o próprio governo, muitas empresas privadas também ainda não estão em adequação com a LGPD. Quem não o fizer o quanto antes enfrentará risco de prejuízos de várias ordens. É fato que a fiscalização em relação à LGPD será da ANPD e que as sanções administrativas dessa lei ainda não estão em vigor, mas vários outros controles – e possivelmente até mais onerosos – já existem e estão em pleno funcionamento.
Ainda sobre a ação, a condenação foi em primeira instância; portando, da sentença ainda cabe recurso.
Gostou deste texto? Faça parte de nossa lista de e-mail para receber regularmente materiais como este. Fazendo seu cadastro você também pode receber mais informações sobre nossos cursos, que oferecem informações atualizadas e metodologias adaptadas aos participantes. Temos cursos regulares, já consagrados, dos quais já participaram mais de 800 profissionais das IES.
Também modelamos cursos in company sobre temas gerais relacionados ao Direito da Educação Superior, ou mais específicos. Conheça nossas opções e participe de nossos eventos.
Bình luận