Já na fase final da discussão sobre a abertura de cursos de medicina, iniciados pela via judicial, o Ministério da Educação tenta, mais uma vez, criar entraves para os bons cursos que ele mesmo avaliou. Trata-se da imposição de um limite-padrão de 60 vagas para todos os cursos requeridos, independentemente da cidade ou da infraestrutura da Instituição de Ensino Esse obstáculo será, contudo, analisado pelo STF, que poderá verificar a falta de coerência e proporcionalidade da limitação imposta pela Portaria SERES 531/2023.
Certamente, os cursos superiores e, em especial, os cursos com grande exigência de práticas ou estágios, devem ter uma limitação do número de vagas ofertadas. No Brasil, essa é a regra prevista no Art. 44 do Decreto 9.235/2017. As instituições de ensino podem requerer o número de vagas pertinente ao seu projeto pedagógico, mas o MEC, com base em seu padrão regulatório vigente, pode deferir ou restringir o número de vagas anuais solicitadas dos cursos.
Não há, entretanto, uma limitação geral. A razão disso é o fato de que o limite é estabelecido pelas condições locais e pela robustez da proposta, fatores que variam dependendo da cidade sede escolhida para oferta e do projeto pedagógico dos cursos.
O número de alunos de um curso de medicina em Belo Horizonte, por exemplo, precisa considerar o fato de que existem muitas vagas de estágio ou prática nas mais diversas áreas, algo comum em grandes capitais. Deve-se considerar, também, quantas vagas já são oferecidas no município. Além disso, mesmo existindo ambientes de prática, o projeto do curso precisa ser analisado, afinal as aulas teóricas e muitas outras atividades dependem da infraestrutura das Instituições de Ensino. Nesse sentido, em suma, a análise seria proporcional.
Evolução dos critérios de atribuição de vagas de medicina.
Desde 2010, a principal regra para determinar o número de vagas a ser ofertadas por um curso de medicina se dá considerando a proporção em relação aos leitos hospitalares. O instrumento de avaliação para cursos de medicina daquele ano previa a atribuição de conceito 4 quando o pedido possuir as seguintes características::
Quando o número de vagas proposto corresponde adequadamente à dimensão do corpo docente e às condições de infraestrutura da IES, e há disponibilidade de serviços assistenciais, incluindo hospital, ambulatório e centro de saúde, com capacidade de absorção de um número de alunos equivalente à matrícula total prevista para o 1º ano do curso, considerando a previsão de 5 ou mais leitos na(s) unidade(s) hospitalar(es) própria(s) ou conveniada(s) para cada vaga prevista para o 1º ano do curso, resultando em um egresso adequadamente treinado em urgência e emergência, e atendimento primário e secundário, e capaz de diagnosticar e tratar as principais doenças, e apto a referir casos que necessitem de cuidados especializados. (indicador 1.1.3)
Quando a relação vagas/docente equivalente a tempo integral, previstos para os 3 primeiros anos do curso, estiver entre 25/1 (inclusive) e 20/1 (exclusive). (indicador 2.3.1)
Quando o curso disponibiliza laboratório de informática com acesso à internet (banda larga), na proporção de um terminal para a faixa de 20 alunos (exclusive) e 25 alunos (inclusive), considerado o total de matrículas dos cursos em funcionamento, mais as vagas a serem oferecidas no primeiro ano do curso proposto. (indicador 3.1.3)
Havia, no instrumento de avaliação à época, uma proporção matemática em relação à infraestrutura e aos docentes, bem como uma proporção de 1 para 5 na relação entre vagas e leitos. Ou seja, havia clara proporcionalidade, como mencionado acima.
Critérios similares foram incluídos nos instrumentos de avaliação de 2012 e 2015, contudo, houve uma mudança em 2017. Naquele ano um novo padrão foi estabelecido pela Portaria Normativa 20, a qual estipulou que as vagas, para todos os cursos superiores, seriam definidas pelo “número de vagas solicitado pela IES” e pelo “conceito obtido no indicador referente a número de vagas do instrumento de avaliação externa in loco”.
Esta foi uma inovação positiva, pois a exigência do instrumento do indicador específico passou a ser a fundamentação em “…estudos quantitativos e qualitativos, que comprovam sua adequação...” ao corpo docente e à infraestrutura física e tecnológica. Esses estudos são uma evolução, especialmente porque o indicador de qualidade mais elevado exige estudos periódicos, ou seja, abandona a visão estática da adequação regional.
Mas engana-se quem pensa que a existência de campos de prática foi esquecida. No instrumento de 2017 existem 2 indicadores sobre isso. O indicador “Integração do curso com o sistema local e regional de saúde (SUS)”, exige convênios vinculados a diversos cenários descritos nas DCN e no PPC como forma de viabilizar a formação do discente em serviço. E o indicador “Atividades práticas de ensino para áreas da saúde” impõe a comprovação da inserção nas mais diversas práticas para o “desenvolvimento de competências específicas da profissão, relacionadas ao contexto de saúde da região”.
Enfim, desde 2017 o critério de 1 vaga para cada 5 leitos foi substituído por critérios igualmente proporcionais, porém subjetivos. Isso ocorreu porque os cursos de medicina passaram a ser tratados de forma específica apenas no Programa Mais Médicos, mas talvez devesse ter ocorrido como um upgrade. Até porque esta foi uma atualização baseada no fato de que os critérios objetivos acabam ficando defasados no tempo, notadamente quando as atividades ligadas à medicina estão em expansão e novos ambientes de prática, além dos leitos, precisam ser explorados.
Como as vagas de medicina são atribuídas hoje?
Em relação aos cursos iniciados por via judicial, o MEC respeitou, inicialmente, essa mudança. Recentemente, entretanto, resgatou o critério de 1 para 5 e foi ainda mais rigoroso, impondo-o como uma proporção ligada apenas a leitos SUS encontrados na microrregião de saúde em que se busca ofertar o curso. Nesse sentido, esqueceu-se de considerar os leitos privados, bem como as vagas em equipes multidisciplinares ou em centros de atendimento à saúde mental, dentre outros “leitos equivalentes”, que já foram utilizados previamente em Editais do Mais Médicos, como o de 2017.
Nota-se aí uma involução, uma negligência em relação aos estudos exigidos no instrumento de avaliação e o retrocesso com a utilização de um critério aparentemente objetivo, mas sem sentido. Um critério que não mede toda a capacidade regional de oferta de campos de prática em medicina.
A recente mudança na Portaria 531/2023 aprofundou esse atraso, substituindo o critério objetivo e relativamente proporcional por um número sem sentido: 60 vagas.
Na verdade, fez pior: usou o número de vagas tido genericamente como mínimo para funcionamento de um curso de medicina. Essa informação consta da Nota Técnica Conjunta nº 3/2023/DPR/SERES/SERES, que atribuiu, em outubro de 2023, esse número genérico de vagas para os cursos do novo chamamento de cursos do Programa Mais Médicos (Edital 01/2023).
Neste momento foi quebrado todo o histórico de cuidado com o princípio da proporcionalidade. 60 vagas não têm o mesmo impacto em qualquer região de saúde nem refletem cada proposta feita, por cada Instituição de Ensino.
E agora, o STF vai julgar vai definir a matéria.
A AGU foi intimada no dia 5 de janeiro de 2024 para se manifestar sobre o tema, mas até hoje, dia 30, não respondeu. Provavelmente, tentará mostrar que houve uma escolha técnica, eventualmente deixando de dizer que as 60 vagas seriam um número mínimo e genérico, calculado sem qualquer consideração em relação ao princípio da proporcionalidade.
Em um contexto realmente mais técnico, essa discussão não seria sequer necessária, pois teria sido feita uma Análise de Impacto Regulatório (AIR), tal como determina no Decreto 10.411/2020. Nessa análise teria de constar a “descrição das alternativas possíveis ao enfrentamento do problema regulatório” e seus possíveis impactos, a “identificação e definição dos efeitos e riscos”, o panorama regulatório internacional sobre o assunto e outros pontos que são tratados no Decreto como obrigatórios. Além disso, a norma estimula a participação social no debate, o que seria extremamente positivo.
Mas não há uma análise de impacto! Apenas notas técnicas emprestadas do Programa Mais Médicos tratam do limite de 60 vagas e, frise-se, tratam do assunto considerando somente os futuros chamamentos públicos.
É nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal, nas ações ADC nº 81 e ADI nº 7187, terá de decidir mais uma vez, senão em cautelar, já no julgamento definitivo, sobre restrições aparentemente ilegais criadas pelo Ministério da Educação. O processo já está pronto para ser analisado depois que o Min. André Mendonça concluiu seu período de vistas e existe um período de julgamento previsto para o período de 09 a 20 de fevereiro de 2024.
A expectativa é que a restrição seja afastada e que as 60 vagas sejam substituídas pelo critério proporcional e coerente inscrito nas regras vigentes nos últimos anos. Até porque, o principal fundamento da decisão do STF já proferida e triplamente ratificada no mérito é, justamente, o princípio da proporcionalidade.
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