A Academia possui vários pontos positivos, como a valorização da técnica e o trato, normalmente gentil. Porém, existem dois pontos que incomodam muito: a citação de textos isolados como evidências e, no campo prático, um artifício quase cômico de criar comissão ou grupo de trabalho para decidir assuntos dos quais os decisores querem fugir.
Infelizmente, essa impressão negativa é a que mais ressoa do extenso e bem redigido voto do ministro André Mendonça em relação à constitucionalidade dos chamamentos públicos para abertura de cursos de medicina, proferido em 9 de fevereiro de 2024.
No mérito, o texto tem cinco partes. A primeira, das considerações iniciais, destaca a importância de considerar "fatos constitucionais" e fazer a revisão de prognósticos legislativos. As quatro seguintes analisam esses fatos e prognósticos, esmiuçando: (1) o contexto internacional e dos “desertos médicos”; (2) as “políticas públicas relacionadas à expansão da oferta de mão de obra em saúde no país”, desde o projeto Rondon até as últimas medidas do governo Bolsonaro no Programa Médicos pelo Brasil; (3) os Chamamentos já realizados e o período de moratória; e (4) o cenário atual que, segundo o voto, enfrenta o problema da escassez de médicos sem considerar a importância da fixação de profissionais e das melhorias nas condições de trabalho e da infraestrutura de saúde.
Depois dessa exposição, o voto faz um diagnóstico: há uma insuficiência de dados para embasar a tomada de decisão, inclusive porque não foi feita a análise de impacto regulatório (AIR, conforme Decreto 10.411/2020). Além disso, frisa que houve falta de participação social efetiva na formulação e implementação das políticas de saúde e educação, destacando este como o problema jurídico central do contexto descrito anteriormente.
Dessas digressões, com dados textos e falas de especialistas selecionados para fundamentar a tese, o voto propõe o seguinte encaminhamento:
170. Ante o exposto, como mecanismo de superação das omissões e vícios de inconstitucionalidade apontados, deverá o Ministério da Educação, no prazo de 180 dias a contar da publicação da presente decisão, em atuação coordenada com as demais instâncias governamentais com atribuições institucionais para tanto, reanalisar e redefinir os instrumentos regulamentares da referida política pública. Ainda, a redefinição da política pública deverá estar fundamentada em prévia avaliação de impacto regulatório, com base nos melhores indicadores para o ensino médico, assegurando-se a efetiva participação dos grupos da sociedade civil diretamente interessados ou potencialmente impactados pela política pública em questão.
171. Outrossim, considerando (i) a apontada necessidade de reavaliação da política pública em tela; (ii) o risco de esvaziamento da eficácia da presente decisão em função da continuidade do processo de chamamento público ora em curso; (iii) que a implementação da presente política pública estava suspensa desde 2018 — ou seja, há mais de 5 (cinco) anos—; (iv) já na realidade presente, o notório cenário de aumento considerável de vagas para ingresso no curso de Medicina — havendo hoje uma proporção de 2,69 médicos por 1.000 habitantes—; (v) as evidências das projeções futuras desenvolvidas pela entidades de classe, que apontam para o atingimento da proporção de 3,5 médicos por mil habitantes, antes de 2030, a partir das vagas já existentes; bem como (vi) a necessidade de garantir-se segurança jurídica à questão: entendo necessário determinar que sejam suspensos os pedidos e procedimentos administrativos e judiciais que objetivem a abertura de novos cursos — ou ampliação de vagas naqueles já existentes — até que sejam ultimados os trabalhos necessários à reanálise regulatória acima determinada.
172. Comungando das mesmas razões e preocupações apontadas pelo eminente Ministro relator, em obséquio à segurança jurídica e ao excepcional interesse social envolvido, acolho parcialmente a proposta de modulação apresentada por Sua Excelência para excetuar expressamente dos efeitos da decisão apenas os “novos cursos de medicina instalados – ou seja, contemplados por Portaria de Autorização do Ministério da Educação – por força de decisões judiciais que dispensaram o chamamento público e impuseram a análise do procedimento de abertura do curso de medicina ou de ampliação das vagas em cursos existentes nos termos da Lei 10.861/2004”, restando assegurado – apenas aos cursos que se amoldem à situação fática acima delineada – a manutenção do seu funcionamento. (Texto sem grifos para facilitar a leitura)
Inicialmente, há a determinação da criação de grupo de trabalho para, em reduzidíssimos 180 dias, reanalisar e redefinir os instrumentos regulamentares da política pública, bem como para a realização de avaliação de impacto regulatório. Certamente, o tema merece tratamento de urgência e, na verdade, já deveria ter sido decidido. Mas cogitar que estudos completos, a oitiva da sociedade e instrumentos melhores possam ser feitos em seis meses talvez seja subestimar a complexidade do problema.
Para demonstrar o tamanho da tarefa basta lembrar que a justificativa da moratória de cinco anos instituída pela Portaria 328/2018 era justamente criar um grupo de trabalho para apresentar “relatórios e estudos a fim de subsidiar a política de formação médica e as ações regulatórias do MEC para a autorização de novos cursos de Medicina...”. Essa suspensão dos processos regulatórios para a realização de “estudos” foi justamente a raiz do problema que levou à judicialização discutida na ADC nº 81. E ao final de cinco anos, nenhum estudo foi discutido com a sociedade nem teve peso para a regulação do setor. Portanto, é difícil pensar que um estudo de 180 dias seja realmente uma solução, muito menos uma resposta jurídica adequada.
Na realidade, há pouco de jurídico nessa decisão. Mesmo entusiastas da relação do Direito com outros ramos do conhecimento — como administração e economia — veriam na decisão a ausência de análise jurídica do confronto entre o direito à liberdade de iniciativa e o uso de chamamentos por editais públicos. Ou seja, o texto do voto adentra pouco na constitucionalidade, ou não, do Art. 3º, da Lei 12.871/2013. Certamente, a licença que se dá para as Cortes Supremas analisarem “fatos constitucionais” não é uma autorização para deixar de lado o Direito, para deixar de dizer se determinado dispositivo é, ou não, inconstitucional.
Isso fica evidente porque o parágrafo 170, transcrito acima, menciona a “...superação das omissões e vícios de inconstitucionalidade apontados...”, mas, ao contrário dos outros votos, não declara a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do artigo discutido. De fato, ao mencionar a superação de vícios, dá a entender que considera a política pública inconstitucional ou “desconforme” em relação à Constituição.
Daí surge o problema nos parágrafos seguintes. Primeiramente, se há indício de vício na política pública, o voto não deveria determinar que sejam “suspensos os pedidos e procedimentos administrativos e judiciais que objetivem a abertura de novos cursos”. No parágrafo 171, transcrito acima, todos os argumentos para a suspensão acabam sendo fruto de uma visão negativa em relação à expansão dos cursos, não de sua ilegalidade ou desconformidade com princípios e regras constitucionais.
Depois, quando adere em parte à modulação proposta, o voto parece cometer um deslize ao dizer concordar apenas com a modulação aplicada às portarias já emitidas. Isso porque, contraditoriamente, no parágrafo anterior havia mantido os demais processos — processos em andamento — suspensos. Ora, se os processos em tramitação devem ficar suspensos, eles também são objeto de uma forma de modulação, que impede sua extinção e dá perspectivas de análise após os 180 dias.
Nesse sentido, o voto sinaliza uma terceira via quanto à modulação: (1) a proposta principal, do Min. Gilmar Mendes, garante o prosseguimento dos procedimentos de autorização que já superaram a análise documental e o funcionamento normal dos cursos com portaria; (2) a proposta, sempre cautelosa, mas desta vez por demais restritiva, do Min. Fachin, sugere que apenas os cursos com portaria sejam preservados; e (3) a proposta do Min. Mendonça garante este funcionamento, mas inova ao defender a suspensão, por 180 dias, dos processos administrativos de autorização em andamento.
Em suma, o novo voto, muito bem escrito e com clara intenção de melhoria do sistema de saúde, é uma proposta totalmente diferente. Uma proposta, a priori, sem muito sentido prático, apesar de se caracterizar como guiada por evidências.
Por fim, deve ser lamentada a ausência de qualquer manifestação sobre as centenas de ordens judiciais descumpridas pelo Poder Executivo há meses, algumas há anos. Os votos no STF precisam começar a tratar dessa questão, pois, se tratada como prioridade, muitos outros cursos com portaria emitida e abrangidos por todas as propostas de modulação poderiam ser beneficiados.
Na sequência do voto aqui discutido, o Min. Alexandre de Moraes pediu vistas do processo. Isso é ótimo, ele é um constitucionalista de renome e pode tomar para si a necessidade de uma decisão efetiva, sobre constitucionalidade, direitos e, principalmente, sobre segurança jurídica. Até porque, a criação de um período transitório e incerto, que prolonga o problema dos cursos de medicina, não é desejado por ninguém.
Ainda no mesmo dia, o Ministro Dias Toffoli antecipou seu voto acompanhando o relator e gerando um placar de 3 votos para a tese de modulação do Ministro Gilmar Mendes, 2 votos para a tese de modulação do Min. Fachin e um voto diferente das primeiras teses, proferido pelo Min. André Mendonça.
Diante desse quadro, depois do período de vistas, a expectativa é que o julgamento valorize, de fato, a segurança jurídica e os investimentos feitos. Espera-se que a dúvida razoável criada por milhares de decisões seja ponderada na modulação e que o voto médio, que não se distancia do plano jurídico nem do rigorismo formalista, prevaleça. Este voto é o voto do Relator da cautelar, uma decisão ponderada, clara, técnica e, comparada a este último voto, adequada para resolver em definitivo a questão.
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