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Inconstitucionalidade: municípios insistem em promulgar leis que proíbem ensino sobre gênero em escolas 

O Supremo Tribunal Federal invalidou, mais uma vez, leis dos municípios de Tubarão, de Santa Catarina, Petrolina e Garanhuns, de Pernambuco, que proibiam a abordagem de temas relacionados a questões de gênero nas escolas.


A decisão foi unânime, com o Plenário entendendo que as leis municipais violaram a competência privativa da União para estabelecer normas gerais sobre educação, além de veicularem conteúdo discriminatório.


O Tribunal já havia consignado que a proibição do tema viola os valores constitucionais da educação e da liberdade de ensinar e aprender. 


Nesta ocasião foram julgadas em conjunto duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs 466 e 522). A primeira delas foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República,  questionando a lei de Tubarão que proibia a inclusão dos termos “gênero”, “orientação sexual” ou sinônimos na política municipal de ensino, no currículo escolar, nas disciplinas obrigatórias, nos espaços lúdicos e nos materiais didáticos. A ADPF 522, por sua vez, foi interposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), contestando as leis sobre os planos de educação de Petrolina e Garanhuns, que vedavam a política de ensino com informações sobre gênero. 


As leis municipais


As leis impugnadas regulavam o exercício de liberdades públicas nas escolas dos municípios de Tubarão (SC),  Petrolina e Garanhuns (PE) e vedavam determinadas condutas a professores e à administração escolar.


Ao fazê-lo, restringiram o conteúdo da liberdade constitucional de ensino, pois suprimiram a manifestação e discussão a respeito de tópicos inteiros da vida social, proibindo os professores de “abordar direta ou indiretamente, bem como praticar atividades pedagógicas, inclusive extraclasse, sobre temática referente à teoria de gênero, questões de gênero, identidade de gênero ou ideologia de gênero”.


As escolas também seriam impedidas de utilizar, elaborar, publicar, expor e distribuir quaisquer livros didáticos ou não, que versassem ou se referissem, direta ou indiretamente, sobre ideologia de gênero, diversidade sexual e educação sexual. 


O mérito das ações


O constituinte originário atribuiu à União a competência privativa para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional. Conferiu, também, à União, aos Estados e ao Distrito Federal competência concorrente para regular sobre “educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação”.


Só que as normas gerais sobre ensino e educação cabem privativamente à União, pois a veiculação de princípios que regem as atividades de ensino é assunto que demanda tratamento uniforme no território nacional.


O ente central da Federação editou, então, a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN, que estabeleceu, em seu art. 3º, os princípios norteadores do ensino, entre os quais se destacam a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; o respeito à liberdade e o apreço à tolerância; a vinculação entre educação escolar e as práticas sociais; e a consideração da diversidade étnico-racial.


A possibilidade de os Estados-membros e o DF suplementarem a legislação nacional, e, da mesma forma,  o fazerem os municípios, em relação à legislação federal e estadual, quanto a assuntos de interesse local, não abrange a produção de leis em sentido diverso do previsto na lei nacional em vigor.


A competência legislativa do Estado-membro só pode ser exercida na ausência de norma geral federal, o que não ocorre nessa matéria.


E o interessante é que as normas impugnadas ainda são normas municipais, instituindo princípios específicos e não coincidentes com os previstos na norma da União, o ente político central competente  para orientar o ensino em todo o país.


Os legisladores dos municípios citados, portanto, invadiram a esfera de competência constitucionalmente reservada à União, extrapolando a mera regulamentação de assunto de interesse local, sendo patente, portanto, a inconstitucionalidade.


O conteúdo das leis municipais também afronta a Constituição


Não bastou o vício formal para a confecção das leis, com a invasão de competência. As normas possuem um vício material, qual seja, elas são incompatíveis materialmente com o ordenamento constitucional.


As decisões do STF mostram, mais uma vez, que as leis municipais que pretendem proibir o ensino sobre gênero em escolas afrontam preceitos fundamentais inscritos na Constituição Federal de 1988:


  • Ao direito fundamental à igualdade de gênero (art. 5º, caput);

  • À  educação (art. 6º c/c arts. 205 a 214);

  • À liberdade de ensino, como dimensão específica da liberdade de manifestação do pensamento do corpo docente (art. 5º, IV e IX c/c art. 206);

  • Ao direito da criança, do adolescente e do jovem de ser colocado a salvo de toda forma de discriminação e violência (art. 227) e;

  • À laicidade do Estado (art. 19, inciso I).


É interessante o trecho da decisão posta nas ADPFs que diz que o  que é ensinado nas escolas depende em grande medida do conteúdo dos livros didáticos. E que, ao excluir o ensino sobre temas ligados ao gênero, a norma atacada afronta não apenas o direito fundamental à educação de estudantes e professores, como viola os direitos de quem esteja fora do padrão heteronormativo, como a população LGBT, de terem seus corpos, sua sexualidade, sua realidade e seus dilemas representados nos livros e abordados nas escolas. “A norma é obscurantista, porque almeja proscrever o próprio debate sobre uma realidade humana.”


Uma educação com democracia autoriza que o Estado defina conteúdos dos cursos de formação e dos objetivos de ensino, inclusive de forma independente dos pais, e nisso seguimos os passos do Tribunal Constitucional Alemão, que possui precedente nessa linha.


Ora, nossa Constituição Federal dispõe sobre as diversas liberdades que fazem parte do conteúdo do direito à educação: aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. As liberdades de aprendizado, ensino e pesquisa formam o núcleo essencial do direito à educação. Não existe direito à educação plena sem liberdade de ensinar e de aprender.


E a liberdade acadêmica deve ser aplicada a todo setor da educação, não só a universidades, incluindo o direito de todos na comunidade expressarem livremente suas opiniões. É óbvio que esse direito não é absoluto. Ele é balizado pela liberdade dos demais e pelo dever de assegurar discussão justa de opiniões contrárias, desde que todos sejam tratados sem discriminação, dentro das normas  relativas à proibição de atos e palavras em apologia ao crime.


O princípio da laicidade também estabelece uma cláusula importantíssima de proibição para o estado: a impossibilidade do uso de temas de fundo religioso como instrumento para demarcar exercício de outros direitos fundamentais, como, por exemplo, a liberdade de orientação sexual.


Como vivemos em um estado laico, é terminantemente vedado promover qualquer religião institucionalmente. E as garantias do Estado secular e da liberdade religiosa vão além: de acordo com o Supremo Tribunal Federal, elas impõe uma


“postura de distanciamento quanto à religião, impedem que o Estado endosse concepções morais religiosas, vindo a coagir, ainda que indiretamente, os cidadãos a observá-las. Não se cuida apenas de ser tolerante com os adeptos de diferentes credos pacíficos e com aqueles que não professam fé alguma. Não se cuida apenas de assegurar a todos a liberdade de frequentar esse ou aquele culto ou seita ou ainda de rejeitar todos eles.
A liberdade religiosa e o Estado laico representam mais do que isso. Significam que as religiões não guiarão o tratamento estatal dispensado a outros direitos fundamentais, tais como o direito à autodeterminação, o direito à saúde física e mental, o direito à privacidade, o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de orientação sexual e o direito à liberdade no campo da reprodução.” (ADPFs 466 e 522)

A conclusão exposta nas ADPFs 466 e 522 é incontestável: as leis municipais impugnadas guiaram-se por perspectivas morais de fundo religioso e isto viola a laicidade e o pluralismo moral. Nisso também reside sua inconstitucionalidade, felizmente declarada.

 

 

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