Inicialmente, é preciso fixar o conceito da proteção de dados pessoais como direito fundamental autônomo, primeiramente reconhecido por decisão do STF e posteriormente por Emenda à Constituição, que tornou a proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, um direito fundamental.
A medida, como cláusula pétrea, pode impedir que leis estaduais e municipais sejam criadas em conflito com o que já está previsto na Lei Geral de Proteção de Dados. Qualquer modificação em relação ao tema só poderá ser realizada no sentido de ampliar e/ou resguardar direitos e jamais fragilizando a proteção à privacidade do cidadão.
Criança e adolescente – consentimento como regra
O artigo 14 da LGPD informa que o tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deve ser realizado em seu melhor interesse.
A legislação pertinente esmiúça que ser feito sempre com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal. Neste caso, os controladores (onde as instituições de ensino se encaixam) deverão manter pública a informação sobre os tipos de dados coletados, a forma de sua utilização e os procedimentos para o exercício de vários direitos que são previstos no art. 18 da lei, dentre eles acesso aos dados, correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados e anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários (§§1 º e 2º).
No § 3º do artigo 14 há a previsão de que poderão ser coletados dados pessoais de crianças sem o consentimento apenas quando a coleta for necessária para contatar os pais ou o responsável legal, utilizados uma única vez e sem armazenamento, ou para sua proteção, e em nenhum caso poderão ser repassados a terceiro sem o consentimento.
O melhor interesse da criança e do adolescente deve prevalecer em qualquer destas situações e isto exige avaliação cautelosa por parte do controlador, que pode ser uma instituição de ensino, por exemplo, a quem compete as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais.
O enunciado pretende destacar a soberania do melhor interesse da criança e do adolescente como critério fundamental para a avaliação de operações de tratamento de dados envolvendo estes titulares e ele foi fruto de participação social, após instrumento simplificado para coleta de sugestões da sociedade sobre o tema.
A regra, portanto, é a necessidade de consentimento, sendo que a lei elenca dez casos de dispensa de consentimento por parte do aluno, abrangidos por três hipóteses, quais sejam:
em que haja interesse legítimo da IES;
em que a IES esteja cumprindo obrigação regulatória ou
em que a IES precise do tratamento dos dados para cumprir obrigações oriundas de contrato.
Estado do Paraná
O Estado do Paraná tem feito uso de biometria facial e IA para fiscalizar presença e até comportamento dos alunos.
Diante de algumas denúncias anônimas de professores, em dezembro de 2022 foi feito um pedido de informação à Secretaria de Educação do Estado sobre a existência de autorização dos responsáveis legais para a coleta de dados biométricos dos estudantes.
O Deputado Estadual Goura (do PDT) questionou a Secretaria pelo fato de a biometria ser um dado sensível nos termos do art. 5º, II da lei 13.709/2018 e requerer autorização específica e destacada em termo.
E, em caso afirmativo, se houve autorização específica dos pais destes alunos quanto à captação da imagem/dados biométricos dos filhos para a finalidade anunciada pela escola.
Como resposta, a SEED encartou ao processo o denominado Termo de Cessão de Uso de Imagem, pelo qual seria extraído o consentimento para a coleta de dados biométricos faciais.
Todavia, conforme o Termo mencionado, de acordo com a análise produzida no Relatório de 2023 intitulado Reconhecimento Facial nas Escolas Públicas do Paraná, coordenado por Carolina Batista Israel e Rodrigo Firmino, professores do Departamento de Geografia da UFPR e do programa de pós-graduação em gestão urbana da PUCPR, respectivamente, há um erro de compreensão da diferença entre imagem facial e dados biométricos faciais por parte da SEED.
Este erro de compreensão leva à inobservância do artigo 11, inciso I, da LGPD, que estabelece a necessidade de que o consentimento de coleta e tratamento de dados sensíveis deve-se dar “de forma específica e destacada, para finalidades específicas”.
Fato que o Termo de Cessão de Uso de Imagem da SEED do Paraná não fala sobre a coleta de dados biométricos ou sua condição de dado sensível e não delimita finalidades limitadas e específicas, não havendo, portanto, um consentimento livre, inequívoco e informado sobre a coleta de dados sensíveis.
E ainda que fossem desconsideradas as implicações da coleta e tratamento de dados sensíveis, o Termo de Cessão de Uso de Imagem possui um vício de origem, pois condiciona o acesso a um serviço público de direito, à educação, à cessão compulsória da imagem dos estudantes, o que está disposto na Instrução Normativa nº 001/2022 – SEED/DPGE, demonstrando ausência de consentimento livre.
“Ao concordar com a vaga e com a instituição de ensino, propostas pela SEED, o responsável legal deverá ler e assinar eletronicamente o termo uso de imagem e requerimento de matrícula, disponibilizados automaticamente pela “Área do Aluno”, e optar em receber uma cópia do comprovante de matrícula, no endereço de e-mail informado, ou imprimi-la.” (Trecho do Relatório de 2023 intitulado Reconhecimento Facial nas Escolas Públicas do Paraná)
O acesso ao ensino público, portanto, fica condicionado à privação do exercício do direito previsto no artigo 247 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê penalidade à divulgação de imagem de criança e adolescente sem autorização prévia. Da forma como foi confeccionado, o Termo de Cessão de Uso de Imagem se presta a uma anuência incondicional à SEED para o uso de imagem de estudantes do ensino público, independentemente do contexto em que as imagens sejam capturadas ou do veículo onde serão divulgadas e ainda que não sejam armazenadas.
Para a SEED do Paraná, em resposta ao pedido de esclarecimentos de outra Deputada, Dados Biométricos Faciais e Imagem Facial são indistintos, sendo que o Relatório informa que a Secretaria também demonstra dificuldades em realizar atividades fiscalizatórias.
Além disto, diante de mais pedidos de esclarecimentos por parte do Legislativo à Diretoria de Tecnologia e Inovação sobre o termo de consentimento utilizado para a coleta de dados biométricos faciais, notou-se que foram oferecidas respostas diversas, sempre com equívocos de compreensão da norma e dos princípios que regem a matéria.
Enfim, o Relatório finaliza o tópico “Das formas de consentimento empregadas” como iniciamos nosso texto, ou seja, demonstrando que crianças e adolescentes são titulares de um conjunto de direitos específicos, que devem ser tutelados de modo especial pelo Estado — mas também pela família e pela sociedade como um todo — e devem gozar de atendimento prioritário.
Além disto, na aplicação das normas, as soluções devem sempre prezar pelo maior benefício possível à criança e ao adolescente, sujeitos presumidamente vulneráveis. E se surgem problemas a partir do uso de tecnologia de biometria facial nas escolas, devemos levar em conta o regime de proteção da criança e do adolescente do direito brasileiro. Sem exceções.
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