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Juarez Monteiro e Edgar Jacobs

Fluxo dos Processos de Medicina: convicção ou informação?

A recente divulgação da Nota Informativa 22/2024/CGLNRS/GAB/SERES/SERES-MEC peloMinistério da Educação foi discutida em um artigo anterior. Porém, à época, não foi abordada uma questão importante: a omissão das Portarias Normativas 20/2017 e 23/2017 e do Decreto 9.235/2017.

No preâmbulo da Nota está escrito que seu objetivo é prestar esclarecimento e em seu sumário, que se trata de uma nota informativa, visando consolidar e publicizar os procedimentos e fluxos. O conteúdo, porém, parece destoar desta finalidade.

Em síntese, o documento explica que a ADC 81 fez tramitar diversos tipos de processos relacionados a cursos de medicina e que cada um deles é regido pela norma vigente à época do protocolo. Nesse sentido, após destacar a principal portaria aplicável, o texto descreve que:

5.1. Além do fluxo e padrão decisório da Portaria SERES/MEC nº 531, de 22 de dezembro de 2023, já descritos na parte inicial desta Nota Informativa, há, em trâmite nesta Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior, processos de autorização de novos cursos de Medicina e de aumento de vagas sob outros regimes jurídicos, a depender da sua natureza, origem ou data do protocolo.
5.2. Em síntese, há processos regidos pelas seguintes normas, separadamente:
·       Portaria Normativa nº 40, de 12 de dezembro de 2007;
·       Portaria Normativa nº 2, de 1º de fevereiro de 2013;
·       Portaria Normativa nº 15, de 22 de julho de 2013;
·       Portaria nº 523, de 1º de junho de 2018;
·       Portaria nº 1.061, de 31 de dezembro de 2022;
·       Portaria nº 1.771, de 1º de setembro de 2023;
·       Portaria SERES/MEC nº 531, de 22 de dezembro de 2023.

Por trás da aparente intenção de instruir as Instituições de Ensino, o trecho acima apresenta um dado bastante importante: ele omite as legislações sobre autorização e aumento de vagas de medicina aplicáveis entre 2017 e 2023.

Em relação à autorização de curso de medicina, o único ato normativo mencionado para este período é a Portaria 523/2018, que dispõe sobre aumentos de vagas em cursos de medicina autorizados por chamamento público ou pactuados como expansão das universidades federais. Esta é uma regra restrita, aplicável apenas a um grupo bem definido de cursos e a um tema: o aumento de vagas.

Essa descrição cria um vazio, pois faz parecer que não existia nenhuma norma quanto aos pedidos de autorização de curso de medicina iniciados por decisão judicial em 2018, 2019, 2020, 2021 e 2022. E esta falsa lacuna é conveniente, pois a SERES já tentou usar a norma de aumento de vagas para os casos de autorização de cursos.

Porém, não é fato que exista nesse período um vácuo normativo. Os procedimentos regulatórios de autorização de cursos superiores protocolados entre 2017 e 2023 devem ter seus fluxos regulados pela Portaria Normativa 23/2017 e devem ser decididos com base na Portaria Normativa 20/2017. Estas duas normas, juntamente com o Decreto 9.235/2017, regulamentam, respectivamente, o fluxo dos processos de autorização de cursos superiores, bem como seus aditamentos e o padrão decisório dos processos de autorização de cursos superiores. Dessa forma, apesar de não terem sido citadas na Nota Informativa, existiam normas vigentes sobre pedidos de autorização. Todas elas, incluindo o Decreto, são normas vigentes até hoje e deveriam ter sido mencionadas no documento.

Uma discussão antiga

A falta de menção a essas normas não parece ser uma omissão descuidada, mas uma tentativa de sobrepor a regra de aumento de vagas às regras de autorização de cursos. Este foi um assunto recorrente, sobre o qual, inclusive, o Conselho Nacional de Educação já decidiu:

"A Conjur/MEC, em seu parecer, sugeriu a devolução dos autos a esta Câmara e afirmou que 'a SERES acertadamente utilizou-se das informações prestadas pelo Ministério da Saúde quanto ao número de leitos disponíveis e aplicou a norma contida no artigo 5º, § 2º, da Portaria MEC nº 523, de 1º de junho de 2018'. Ocorre que a Portaria MEC nº 523, de 1º de junho de 2018, trata especificamente de pedidos de aumento de vagas para o curso superior de Medicina, o que não é o caso deste processo, pois o que se analisa neste momento é a autorização do curso superior e não o aumento de vagas.
O padrão decisório dos procedimentos de autorização de cursos superiores é definido na Portaria Normativa MEC nº 20, de 21 de dezembro de 2017, que, em seu artigo 14, dispõe que a SERES deverá observar, para a definição do número de vagas autorizadas, o número de vagas solicitado pela IES e o conceito obtido no indicador referente a número de vagas do instrumento de avaliação externa in loco." (Parecer CNE/CES 615/2023, grifos nossos).

O Poder Judiciário também já reprovou a aplicação de outras normas listadas na Nota em questão. Nos autos do processo nº 1004194-08.2022.4.01.3810, por exemplo, o Magistrado afastou a aplicação da Portaria Normativa nº 2, de 1º de fevereiro de 2013, e afirmou que "está correto o postulante quando afirma que seu pedido deve ser regulado pelo Decreto nº 9.235/2017 e pelas Portarias nº 20 e 23/2017".

Estas decisões confirmam que as Portarias Normativas de 2017 e o Decreto 9.235/2017, são regras aplicáveis aos procedimentos de autorização de cursos de medicina e demonstram que o MEC sempre tenta se esquivar de aplicá-las. Naquele período, a principal tentativa foi impor a norma de aumento de vagas, Portaria 523, principalmente para restringir a criação de novos cursos.

No caso de aumento de vagas de medicina a situação é ainda mais absurda, pois a Portaria Normativa 20/2017 está vigente e regulamenta expressamente o aumento de vagas de medicina nos artigos 24 e seguintes. Assim, todos pedidos anteriores às Portarias 1.061/2022 e 1.771/2023, por exemplo, deveriam ser decididos com base nesta Portaria Normativa e não na referida Portaria 523 ou normas com efeitos retroativos.

Enfim, é indisfarçável a tentativa de manipulação do uso do emaranhado de normas que foram produzidas nos últimos 10 anos e também é bem evidente o fato de que a Nota Informativa é instrumento dessa tentativa de afastar o princípio de que o “tempo rege o ato” (tempus regit actum).

Outra interpretação em breve?

Talvez a intenção de inserir na nota esta lacuna não seja apenas a de validar erros do passado. Convenientemente, o apagamento das normas vigentes sobre autorização de cursos torna menos discutível as regras criadas pela Portaria SERES/MEC 531/2023.

A Portaria da SERES criou normas que tratam de limitação de vagas, dentre outros assuntos, e estas normas não podem ser aplicadas retroativamente. Ou seja, elas não podem se sobrepor às normas vigentes ao tempo do protocolo dos processos. Dessa forma, criar um falso período de anomia poderia tornar menos controversa a aplicação dessa inovação aos processos em andamento.

Essa pode ser a sutileza da Nota publicada recentemente. Ela, aparentemente, é uma forma de tentar conduzir  interpretação do caso e não um texto informativo. O parecer antecipa e justifica a abordagem que o MEC pretende fazer, porém, faz isso omitindo normas aplicáveis. Ora, se não for este seu objetivo, por que um documento tão sério deixaria de citar um Decreto vigente para listar apenas portarias, que são normas hierarquicamente inferiores? E ainda omitir a Portaria 20/2017?

Esta dúvida torna gravíssima a omissão na Nota do MEC. Na prática, parece que a Nota Informativa é uma peça que defende uma tese. É uma espécie de meia-verdade, algo tristemente comum em um momento histórico marcado por fake news e estratégias de pós-verdade.

Portanto, além de conter alguns vieses em seu texto escrito, a Nota Informativa sobre o fluxo de procedimentos de medicina também peca pelo que não cita, notadamente por deixar de tratar das Portarias Normativas 20 e 23/2017 e até mesmo do Decreto 9.235/2017 como normas aplicáveis aos procedimentos em tramitação.

Ao que tudo indica, enfim, esquecer das normas aplicáveis que não interessam à sua maneira de ver o caso é mais uma tática de defesa que uma inverdade. Isso é bom porque a priori exclui a possibilidade de erro técnico. Porém, como afirma Nietzsche em seu clássico “Humano, Demasiado Humano”: “As convicções são inimigas da verdade mais perigosas do que as mentiras”.

 

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