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Ana Luiza Santos e Edgar Jacobs

Educação antirracista: a Lei Federal nº 10.639/03

Em janeiro de 2003 foi sancionada a lei n.10.639, que alterou a lei de diretrizes e bases da educação nacional para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Foram acrescidos dois artigos na LDB, dentre eles o art. 79-B, que determina a inclusão no calendário escolar do dia 20 de novembro como o ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.


O art.26-A, por sua vez, torna obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, incluindo o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.


Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira, de acordo com o § 2o do art.26-A, devem ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.


A lei foi, sem dúvida nenhuma, uma conquista do Movimento Negro, mas ainda hoje não é efetivamente cumprida. A razão continua sendo a intolerância e a discriminação enraizadas na sociedade brasileira.


A pouca formação da maioria dos educadores, que também não reconhece a importância da história e da cultura africana para a compreensão da sociedade brasileira, também é um empecilho para a aplicação da norma.


Em artigo intitulado Percurso da Lei 10639/03: antecedentes e desdobramentos, os pesquisadores Márcia Moreira Pereira e Maurício Pedro da Silva esclarecem que a lei, antes de ser sancionada, passou por vários estágios, sendo resultado direto dos movimentos negros da década de 1970 e do esforço de simpatizantes da causa na década de 1980. Nesta ocasião diversos pesquisadores demonstraram a evasão e o déficit de alunos negros nas escolas, que não apresentavam nenhum conteúdo afrocêntrico.


Isso, vale ressaltar, no segundo país em população negra do mundo, só perdendo para a Nigéria. Mais da metade do povo brasileiro descende de povos africanos e, no entanto, não havia nenhuma valorização da cultura negra de maneira abrangente dentro das instituições escolares.


Na década de 90, enfim, intensos movimentos em todo o país buscavam a afirmação da identidade negra, como salientado no artigo mencionado, com destaque para a Marcha Zumbi dos Palmares, que reuniu cerca de 10 mil negros e negras, que foram a Brasília com um documento reivindicatório a ser entregue ao então presidente Fernando Henrique Cardoso.


Muitas lutas ainda se seguiram, finalizando com a promulgação da lei n.10.639 em 2003 e com a criação, no mesmo ano, de um órgão do Poder Executivo para tratar da questão étnico racial no país: a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que tinha o objetivo de promover a igualdade e a proteção de grupos raciais e étnicos afetados por discriminação e demais formas de intolerância, com ênfase na população negra.


A Secretaria foi extinta em 2015 ao ser incorporada ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, unindo a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Secretaria de Direitos Humanos, e a Secretaria de Políticas para as Mulheres.


A efetividade da lei


É fato que depois da sanção da lei n.10.639/03 surgiram vários cursos – de extensão, graduação ou pós-graduação – voltados à temática africana (história, cultura, literatura), mas infelizmente, como citado no texto Percurso da lei 10639/03: antecedentes e desdobramentos, os educadores brasileiros não receberam na sua educação e formação o preparo adequado para lidar com o desafio da problemática da convivência com a diversidade, o que coloca o discurso em prol de uma escola democrática em xeque. A conclusão é do antropólogo e professor brasileiro-congolês Kabengele Munanga.


Em 2018, quando a lei fez seus 15 anos, muito se falou sobre a efetividade dos artigos que modificaram a LDB em 2003. Naquele ano se tornaram públicas várias histórias de professores que, ao inserir a temática africana dentro de sala de aula, foram vítimas de ataques por parte dos pais por ignorância, preconceito e intolerância religiosa.


Um dos casos foi relatado por uma professora de Geografia da rede municipal de Macaé, município do Rio de Janeiro, que foi denunciada pelo pai de um estudante por exibir um filme sobre a cultura negra dentro de sala de aula. O vídeo, sobre o capoeirista baiano Manuel Henrique Pereira, conhecido como ‘Besouro Mangangá’, mostra a resistência negra, a capoeira, a umbanda e o candomblé como parte dessa resistência.


Vários outros professores relataram serem interpelados por pais de alunos e precisaram repensar a indicação de obras literárias, o que é grande tristeza para o sistema educacional.


A pesquisadora Paola Prandini, co-fundadora da Afroeducação, citada no texto Quinze anos depois, Lei 10.639 ainda esbarra em desconhecimento e resistência, cita como ponto principal da questão famílias que infelizmente entendem que trabalhar a cultura negra é trabalhar somente as religiões de matriz africana, não compreendendo a religião enquanto componente cultural.


Vale dizer que a lei 10.639/03 é uma lei inovadora e única no mundo, mas precisa ser tirada do papel em prol de uma equidade racial, que sustenta conceitos de igualdade e de justiça.


A propósito, de acordo com o Censo Escolar 2015, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), um quarto das escolas públicas não abordam o racismo no currículo, 4 em cada 10 escolas não tratam do tema da desigualdade social e 52% do total não debatem o tema da diversidade religiosa.


A grande maioria omite totalmente a questão negra, sendo pouquíssimos os egressos da educação básica privilegiados por conhecer a História e Cultura Afro-Brasileira. Lamentavelmente não podemos dizer que nos últimos 5 anos a realidade tenha se modificado para melhor.


Há uma crítica interessante a respeito da lei, feita no texto O uso da lei 10.639/03 em sala de aula, publicado na Revista Latino-Americana de História. O artigo interpreta a lei como clara, porém crua, porque ela foca nas micro ações do professor e não nas instituições, que precisam trabalhar sistematicamente a norma, estando cientes da existência da mesma, e proporcionando segurança ao docente, que é o sujeito que enfrenta as situações na prática e que precisa ser resguardado em caso de perseguições.


Mais uma vez mencionamos o professor Kabengele Munanga, citado no artigo Uma análise da implementação da lei 10.639/03 na educação infantil: a percepção dos professores:


“[...] Não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes preconceituosas existentes nas cabeças das pessoas, atitudes essas provenientes dos sistemas culturais de todas as sociedades humanas. No entanto, cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados. (Munanga, 2005).”

Enfim, a luta por tornar efetiva a lei n. 10.639/03 deve ser de todos e não só dos afrodescendentes, pois só então teremos a chance de desencadear um processo de superação do racismo dentro da escola e construir uma sociedade racial e socioeconomicamente mais justa. A escola, com seu papel de formar o aluno para o exercício de cidadania, é mais uma vez o ponto central do debate social: a mudança sempre passará pela Educação.


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