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Cinco imprecisões no segundo voto do STF sobre os cursos de medicina

Atualizado: 7 de out. de 2023

No dia 28 de agosto de 2023 foi apresentado na sessão virtual do plenário do STF, para julgar as ações constitucionais sobre autorização de cursos de medicina, um novo voto.


Trata-se do segundo voto dos 11 que devem ser preferidos sobre o assunto. Nele, o Ilustre Min. Edson Fachin acatou as premissas do primeiro voto - no qual o Ilustre Min. Gilmar Mendes confirmou a constitucionalidade dos chamamentos públicos - mas abriu divergência quanto a uma parte da modulação da primeira decisão.


A modulação é uma técnica por meio da qual, mesmo declarando a invalidade de atos e normas, o STF pode manter alguns de seus efeitos. Neste caso concreto, o primeiro voto manteve dois efeitos: (1) as portarias de autorização de cursos de medicina já concedidas continuam em vigor; e (2) os processos de autorização ainda em andamento, que já tivessem ultrapassado a fase de análise de documentos, teriam prosseguimento.


O segundo voto, do Min. Fachin, decidiu manter apenas a primeira modulação. Contudo, este voto mais novo, redigido com a tradicional elegância do Ministro em questão e com a clara preocupação social que também é uma das características desse julgador, contém cinco imprecisões bastante evidentes.


As duas primeiras dizem respeito a uma dedução no sentido de que o interesse social nos cursos já aprovados seria diferente daquele atribuído aos cursos em fase de aprovação, mesmo que eles tenham superado etapas do processo administrativo regulatório.

Nesse sentido, está escrito que:


É certo que diversas instituições de ensino tiveram concluídos os processos de implantação de unidades educacionais. Essa situação acarretou não apenas investimento de recursos financeiros e humanos em empreendimentos avalizados pelo Poder Judiciário e pelo Poder Executivo, como também a mobilização de diversos estudantes que atualmente constituem o corpo discente das instituições que já estão em funcionamento. Há, portanto, interesse social em equacionar tais situações, resguardando expectativas legítimas e fatos já consolidados.
Essa realidade, contudo, não abarca aquelas situações em que os processos administrativos com pedido de implantação de cursos de medicina estão ainda em andamento. E tampouco comporta excepcionar os processos administrativos relativos a instituições de ensino superior já credenciadas para oferta de outros cursos de graduação e que agora pleiteiam abertura do curso de medicina.
Nesses casos, não houve ainda real, concreta e efetiva mobilização de corpo docente e discente e eventuais investimentos que tenham sido realizados tem seu fundamento em decisões judiciais de caráter precário, ao arrepio da orientação legal vigente. Ou seja, em tais casos, essas instituições, que sequer receberam até o presente momento autorização para funcionar cursos de medicina, assumiram o risco de ter a autorização para tramitação de seus processos – que, ressalta-se, ainda não tiveram o mérito final analisado - ulteriormente revertida.

Nesse trecho há duas claras incongruências que precisam ser debatidas.


A respeito dos processos ainda não concluídos, observa-se a afirmação de que não houve mobilização - docente e discente – nas fases que antecedem a decisão final, e que os investimentos ocorreram por conta e risco das instituições de ensino, que confiaram em decisões “precárias”. Mas o mesmo poderia ser afirmado em relação aos cursos com processos finalizados. Em ambos os casos, há investimento e mobilização docente já nas primeiras fases do processo de regulação educacional e existe - como em qualquer negócio privado, aliás - a lógica da assunção risco.


Nesse contexto, não é correto dizer que para os processos de cursos já decididos houve “investimento de recursos financeiros e humanos em empreendimentos avalizados pelo Poder Judiciário e pelo Poder Executivo” e dizer, em seguida, que em outros projetos, baseados nos mesmos tipos de decisões judiciais, ocorreu um puro investimento de risco. Nos dois casos, ou há investimento avalizado pelo Poder Público, ou existe risco assumido exclusivamente pelos litigantes. A diferença, em vários procedimentos, é a resistência e o ritmo imposto pelo próprio MEC.


Com um olhar mais próximo, essas questões ficam ainda mais incongruentes. Como os processos administrativos de regulação educacional ocorrem em fases bem delimitadas (Art. 19 e 42, do Decreto 9.235/2017), a cada etapa os requerentes recebem o aval do MEC para seguir à etapa seguinte. Assim, o “aval” do Poder Executivo existe não só para no ato final, mas em cada transição de etapa. Em termos concretos: quem supera a fase de documentos com êxito realiza mais investimentos, porque a Administração Pública lhe deu uma decisão favorável e, não, porque assume mais riscos. Portanto, não há diferença técnica entre a situação de quem investe e atua a partir de decisão final e a de quem o faz a cada fase, depois de uma decisão favorável do MEC.


Os fatos confirmam essa afirmação, pois é no momento da visita in loco — fase de avaliação que sucede à análise documental — que os maiores investimentos são feitos, ou seja, fora do chamamento público nenhuma instituição espera a decisão de mérito ou a Portaria de curso para investir em seu projeto de curso.


Ainda analisando o caso mais proximamente, é importante destacar que muitas das decisões contra as quais o voto se volta são sentenças, ou seja, não são decisões precárias. Dito isso, é importante lembrar que as decisões do Poder Judiciário sobre fato consumado consideram essa diferença, pois decisões por sentença já ultrapassaram a fase de instrução e contraditório iniciais, não sendo, de forma alguma, meramente precárias.


Dessa forma, a diferença apontada entre processos administrativos concluídos e em andamento demanda um aprofundamento que não se vê no voto em questão, assim como ocorre na tentativa de contraposição entre investimento de risco e atuação “avalizada” pelo Poder Judiciário e Executivo. Estas são as duas primeiras inconsistências flagrantes.


Outro ponto que merece discussão é o uso de dados isolados. Nesse tópico, nos referimos ao uso dos números de cursos (391) e de processos em aberto (223) para concluir que haveria o provável aumento de 50% dos cursos existentes.


Dados, por si só, não são informações porque eles nem sempre carregam significado. Por exemplo, o número total de 391 cursos existentes, isoladamente, é pouco significativo. Para entendê-lo é preciso avaliar, no mínimo, o crescimento médio do mercado antes do Programa Mais Médicos e da moratória de 5 anos. Pode, por exemplo, ter ocorrido um salto no número de cursos em um dos anos anteriores e um crescimento que normalmente seria de 10 cursos por ano pode ter sido alterado para 100 ou 200 em um ano só. Assim, não importa apenas o número total de cursos, mas sua taxa e regularidade de crescimento.


Essa evolução, que aqui não pretendemos detalhar, seria necessária para inferir as conclusões postas no voto em questão.


Outro dado suplementar para buscar um significado para o número total de cursos seria o ritmo de crescimento induzido pelo Programa Mais Médicos. Aí a dúvida seria: o crescimento imposto pelo Programa em um ano é maior ou menor que o esperado crescimento anual por decisões judiciais? Há, realmente, um disparate? Os números até agora mostram que não: em pouco mais de 5 anos, segundo o próprio voto em análise, apenas “11 cursos de medicina com base em decisões judiciais” foram autorizados, ao passo que, no mesmo período, foram criados 62 cursos por chamamentos públicos.


No mesmo sentido, para analisar o número de processos administrativos supostamente abertos por decisão judicial seria necessário ter alguns dados complementares, por exemplo: o percentual de cursos aprovados pelo MEC nos últimos anos em face do total requerido e o número de cursos, dentre os 223, que ficariam de fora da modulação se aplicado o critério no voto do Min. Gilmar Mendes. Esse exame é necessário, pois nem todos os 223 processos administrativos prosseguiriam se prevalecesse o voto do relator e, dentre os que prosseguissem, nem todos seriam autorizados pelo MEC.


Desta maneira, a existência de 223 processos administrativos em aberto não significa um aumento potencial de 50% dos cursos existentes e, mesmo se significasse, esse crescimento não necessariamente é absurdo para um período de 5 ou 10 anos (2013 ou 2018, até 2023).


A próxima incorreção diz respeito à suposta perda de atratividade dos futuros editais. A afirmação de que o seguimento dos processos administrativos “esvaziará por completo o interesse e a atratividade para que mantenedoras e instituições de ensino se submetam aos respectivos chamamentos” é no mínimo contraditória em face do restante do voto discutido. Se, mesmo com risco jurídico e administrativo, conforme tese adotada no voto do Ilustre Min. Edson Fachin, mais de 200 cursos foram pleiteados, por que as empresas deixariam de participar de certames sem risco algum? Pela lógica econômica, do custo-benefício, é mais atrativo concorrer em um edital sem a necessidade de investimentos prévios do que realizar os ditos investimentos de risco a partir de decisões judiciais.


Além disso, vale lembrar que ambos os votos, do Min Gilmar Mendes e do Min Edson Fachin, impedem, daqui para diante, os processos judiciais sobre o tema. Nesse contexto, qualquer nova oportunidade de abrir cursos de medicina, ainda que condicionada e com altos custos, será muitíssimo valorizada; afinal, será a única via para abrir um novo curso.


Diante deste panorama, não há risco de esvaziamento dos processos que serão abertos por chamamento público. De fato, se eles tivessem vindo antes, talvez nenhum processo judicial existisse.


Por derradeiro, existe uma menção à questão das contrapartidas financeiras ao SUS. Sobre elas, o voto em comento ressalta que o vencedor do chamamento público deverá “... contemplar investimentos na rede SUS de 5 a 10% do faturamento bruto do curso de medicina”, mas conclui que: “mantida a possibilidade de continuidade dos processos administrativos atuais (…) não haverá interesse das instituições respectivas em se submeterem (a) condições muito mais rigorosas, ainda que benéficas e necessárias sob o prisma da coletividade”.


Todavia, as referidas contrapartidas estão delineadas no parágrafo segundo do Art. 3º, da Lei 12.871/2013 e o voto do relator — iminente Min. Gilmar Mendes — expressamente impõe o cumprimento dessa condição para todos os processos administrativos que seguirem tramitando. Ou seja, se mantida a modulação proposta no primeiro voto, de agora em diante as contrapartidas ao SUS ocorreriam sempre, dentro ou fora dos chamamentos públicos.


Assim sendo, as contrapartidas em questão também não deveriam ser consideradas um bom motivo para reduzir a extensão da modulação proposta.


Diante dessa análise simplificada, parecem ter ocorrido incorreções flagrantes no segundo voto juntado ao julgamento do STF nas ADC 81 e ADI 7187. Inconsistências essas que precisam ser discutidas e analisadas pela comunidade jurídica, bem como sopesadas nos demais votos.




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