Há alguns meses o Supremo Tribunal Federal confirmou sua decisão em uma Ação Declaratória de Constitucionalidade sobre a abertura de cursos de medicina. A Corte proibiu a abertura de cursos sem chamamento público, mas validou o andamento de processos administrativos que já tramitavam no MEC.
O processo no STF e a atuação da imprensa e de algumas associações de instituições de ensino fortaleceram um clima ruim que paira sobre novos cursos de medicina, uma impressão equivocada de falta de qualidade. Na verdade, a ideia de que novos cursos são ruins e prejudicam a saúde pública parte da premissa errada de que o Brasil já forma muitos médicos em seu território e discretamente sustenta a visão de que a restrição de novos cursos melhora, automaticamente, a qualidade da oferta atual.
Este tipo de mal-entendido está gerando prejuízos graves para uma geração de brasileiros. A Organização Mundial de Saúde, por exemplo, registrou uma queda de 23 médicos por 10.000 habitantes em 2019, para 21,4 em 2021*. Na OCDE a situação do Brasil também foi analisada em um estudo recente, que afirma: “In Brazil, the number of doctors per 1.000 population also increased rapidly between 2000 and 2019, but it remains low compared to most OECD countries”**. Nenhuma dessas informações indica que o país pode renunciar a novas vagas para estudantes de medicina.
Por outro lado, todos os cursos existentes no território nacional foram autorizados e ou avaliados periodicamente pelas mesmas regras, que são também aquelas usadas para os novos cursos abertos a partir de decisões judiciais nos últimos 5 anos. Ou seja, é impossível dizer que há um diferencial de qualidade entre os novos e os antigos.
Existem, sim, cursos com maior ou menor qualidade, mas isso não é efeito da expansão. Pensar dessa forma seria o mesmo que imaginar que os novos hospitais são piores que os antigos. A regulação e a regulamentação garantem uma razoável padronização da qualidade dos serviços.
Porém, é fato que existe o ruído. Reportagens insistentes e sem base técnica costumam criticar a abertura de vagas para educação médica. Algumas criticam até os Juízes, como se depois de cada decisão judicial não houvesse uma regulação rigorosa do MEC. Na realidade, as expressões falsas sobre “curso aberto por liminar” e “autorização judicial” são resultado de uma narrativa constante, digna do contexto de fake news no qual o país anda mergulhado.
Dois exemplos recentes demonstram os efeitos diretos desse enredo estranho. O primeiro deles foi discutido em nosso artigo “Ato do Conselho Regional de Medicina/RS estipula regras para o ensino médico”, que tratou da Resolução CREMERS nº SEI-7, de setembro de 2024. A norma impôs requisitos para o “ensino médico” e criou responsabilidades novas - e ilegais, a nosso ver - para os coordenadores de curso de medicina. O segundo segue a mesma linha, trata-se da Resolução nº 11, do CRM-MT, publicada no final do mesmo mês de setembro.
A resolução impõe normas para coordenadores de cursos de medicina no Mato Grosso, estabelecendo responsabilidades amplas, como a notificação imediata ao CRM de todas as transferências de alunos, tanto nacionais quanto estrangeiras, e a garantia de que graduados com diplomas revalidados possuam as competências mínimas para o exercício profissional. Essas exigências, porém, ultrapassam as atribuições usuais dos coordenadores, pois normalmente são realizadas por outras pessoas e órgãos internos das instituições, como a secretaria acadêmica e conselhos superiores. Tais normas, além de onerosas, indicam uma possível interpretação equivocada das competências administrativas desses profissionais.
A resolução impõe, também, uma titulação mínima de mestrado ou doutorado para coordenadores de cursos de medicina, uma exigência que, embora bem-intencionada, não está alinhada com a legislação educacional vigente. Além disso, parece estranho o conselho de classe exigir titulação e, não, experiência profissional de seus membros.
Este, entretanto, não é o aspecto mais peculiar da norma. A regra mais esdrúxula é o “direito do coordenador” que, pela resolução, poderia suspender as atividades do curso caso não sejam atendidas as “condições funcionais” previstas na norma. Essa prerrogativa, além de incomum, desafia o caráter democrático de algumas instituições e o perfil empresarial de outras, sendo difícil imaginar um coordenador atuando contra a própria instituição. A regra, se aplicada, poderia causar confusão e impactos acadêmicos, sociais e econômicos significativos tanto em instituições públicas quanto privadas.
Diante de uma norma tão controversa, é inevitável lembrar uma frase famosa do triste período do AI-5: “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país; o problema é o guarda da esquina.” Em 1968, Pedro Aleixo usou essas palavras para alertar Costa e Silva sobre o risco de abusos na aplicação das leis. Embora naquela época a frase fosse uma verdade parcial, pois o problema ia além do “guarda da esquina”, no caso das novas resoluções ela parece extremamente pertinente. São aqueles que regulam o mercado que, influenciados pelos ruídos, causarão mais arbitrariedades.
O problema atual não está no MEC, que adota uma postura restritiva desde 2012, nem na ANUP, que questiona a criação de novos cursos de medicina, tampouco nos veículos de imprensa, que representam a liberdade de expressão. Esses atores, quando agem de boa-fé, cumprem um papel importante ao interpretar a lei. A mais evidente arbitrariedade é a postura de alguns conselhos profissionais que, ao exercerem seu poder de polícia a partir do contexto repulsa aos cursos mais recentes, extrapolam suas competências.
Agora, o MEC e os membros das Associações, principalmente, estão sujeitos a usurpação de competência e excessos de órgãos de classe na área médica. Os conselhos se sentem empoderados para agir, pois já foi dito repetidas vezes que os novos cursos geraram uma crise na qualidade. E a impressão criada é a de que esta é uma crise que não pode ser resolvida pela regulação, afinal os reguladores são os primeiros a questionar a qualidade dos cursos que avaliaram.
É complicado imaginar que os coordenadores de cursos em Mato Grosso ou no Rio Grande do Sul enxerguem como naturais os direitos e deveres tão específicos que lhes foram impostos. Também deve ser difícil para o Poder Público ver os Conselhos tentando sobrepor suas funções de supervisão da educação médica. Há, contudo, um ponto inegável: todos veem que o discurso comercial, ideológico ou corporativista sobre cursos de medicina gera impactos cada vez mais surpreendentes, e ainda parece que veremos muitos desdobramentos surgirem a cada “esquina”.
* World Health Organization 2024 data.who.int, Density of physicians (per 10 000 population) [Indicator]. http://data.who.int/indicators/i/CCCEBB2/217795A, acesso em 24 de outubro 2024.
** OECD (2021), Health at a Glance 2021: OECD Indicators, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/ae3016b9-en, acesso em 24 de outubro 2024.
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