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As instituições de ensino superior e o coronavírus

Atualizado: 3 de abr. de 2020



Estamos diante de um momento complexo, doloroso e, sob certo aspecto, desafiador. Com a declaração de pandemia, torna-se evidente o risco ao qual a COVID–19 expõe a população mundial e as principais instituições sociais devem ajudar a prover respostas para mitigar o risco de contágio e os problemas dele decorrentes.


As Instituições de Ensino Superior podem atuar, nesse contexto de crise, de duas formas: (1) reduzindo os riscos de disseminação do coronavírus; e (2) fornecendo soluções para a saúde das pessoas.


Neste artigo trataremos do primeiro tópico, mais especificamente da possibilidade de reduzir os riscos de contágio por meio da suspensão de aulas presenciais e uso de estratégias, como a dispensa de frequência, para reduzir os problemas causados pelo vírus.


Aula em casa, novo enquadramento decorrente da

Portaria 343/2020


Uma das soluções reiteradamente mencionadas na imprensa e pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), neste início de ano de 2020, é a educação a distância (EAD). Porém, essa modalidade de ensino é restrita a instituições especificamente credenciadas. Esse tema, do credenciamento específico, deve ser mais discutido a partir de agora, pois fica claro que se trata de um anacronismo prejudicial à evolução do ensino, mas, em virtude do Art. 80, § 1º, da 9.394/1996 (LDB), que trata da Educação a Distância como modalidade, e das várias normas do MEC e do CNE, essa autorização estatal específica - denominada Credenciamento EAD - ainda é exigida.


Nesse sentido, é muito pertinente a Portaria 343/2020, modificada em 19 de março de 2020 pela Portaria 345, criou uma exceção à regra do credenciamento, nos seguintes termos:


Art. 1º Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites estabelecidos pela legislação em vigor, por instituição de educação superior integrante do sistema federal de ensino, de que trata o art. 2º do Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017.
§ 1º O período de autorização de que trata o caput será de até trinta dias, prorrogáveis, a depender de orientação do Ministério da Saúde e dos órgãos de saúde estaduais, municipais e distrital.
§ 3º Fica vedada a aplicação da substituição de que trata o caput às práticas profissionais de estágios e de laboratório.
§ 4º Especificamente para o curso de Medicina, fica autorizada a substituição de que trata o caput apenas às disciplinas teóricas-cognitivas do primeiro ao quarto ano do curso.
§ 5º As instituições deverão comunicar ao Ministério da Educação a opção pela substituição de aulas, mediante ofício, em até quinze dias.
Art. 2º Alternativamente à autorização de que trata o art. 1º, as instituições de educação superior poderão suspender as atividades acadêmicas presenciais pelo mesmo prazo.
§ 1º As atividades acadêmicas suspensas deverão ser integralmente repostas para fins de cumprimento dos dias letivos e horas-aulas estabelecidos na legislação em vigor.
§ 2º As instituições poderão, ainda, alterar o calendário de férias, desde que cumpram os dias letivos e horas-aula estabelecidos na legislação em vigor.

Esta norma nos fez mudar esse artigo, que antes vislumbrava como juridicamente limitada a opção de uso da educação a distância. Com esta medida, o Poder Público dá um passo importante, não apenas para solucionar um problema emergencial da mais absoluta relevância, mas também para consolidar o EAD como uma opção real para a contemporaneidade. Por certo, depois desse momento EAD não deve mais ser visto como uma opção de baixo custo e alternativa, mas como uma opção real para a qual todos os docentes já deveriam estar capacitados. Na Portaria, o ponto principal é liberação de “substituição” das aulas presenciais por aulas que “utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação”, na prática trata-se de uma autorização excepcional para que todas as IES usem a modalidade EAD, independentemente de ajuste nos projetos pedagógicos e de credenciamento para a modalidade.


Na norma, que já está em vigor, constam ainda as seguintes medidas:


  1. Limitação do prazo da substituição por 30 dias;

  2. Determinação de que as IES deverão fazer os ajustes nos Projetos Pedagógicos de Curso (PPC), especialmente nas metodologias;

  3. Vedação da aplicação às práticas profissionais de estágios e de laboratório;

  4. Limitação da substituição, na medicina, apenas às disciplinas teóricas-cognitivas do primeiro ao quarto ano do curso;

  5. Imposição de comunicação do procedimento ao MEC, por ofício, no prazo de 15 dias.

  6. Alternativa de suspender as aulas com reposição e alteração de calendário.


Trataremos em detalhe desses tópicos em artigo posterior, notadamente quanto a medicina e a alteração de PPC e do calendário. Mas, desde já, fica esclarecida a possibilidade de oferta de aulas usando técnicas de EAD para substituir as aulas presenciais nos próximos 30 dias.


Existem outras opções?


Nós temos três possibilidades. Em primeiro lugar, como a portaria trata de uma autorização para substituição, entendemos que a mesma não é obrigatória. Como opção, inclusive para cursos de medicina, há possibilidade de manutenção das aulas presenciais e usar as normas vigentes para reduzir a exigência de frequência, usar atividades acadêmicas supervisionadas e ministrar aulas ao vivo.


Cursos presenciais já possuem, normalmente, uma exigência de 75% de frequência, o que dá margem a 25% de aulas sem cobrança de presença dos alunos. Mas o que muitas instituições não sabem é que esse percentual, de 75%, não é previsto em lei para os cursos superiores.


Normalmente, a exigência está em norma interna - regulamento ou regimento - que pode ser modificado; para incluir uma regra assim, por exemplo:


“Em casos de emergência relacionada a saúde a frequência mínima poderá ser dispensada mediante decisão do Conselho Acadêmico da Instituição de Ensino”.

A partir dessa modificação do regimento geral, uma regra do Conselho Acadêmico pode alterar livremente, enquanto durar emergência, a frequência mínima dos cursos presenciais.


Uma segunda opção seria a oferta de atividades práticas supervisionadas. Essas atividades estão previstas na Resolução CNE/CES 03/2007, como trabalho acadêmico efetivo, por isso podem compor parte dos 200 dias previstos como mínimo no Art. 47, da LDB. Nesse sentido, as atividades acadêmicas ministradas como práticas supervisionadas podem ser usadas para substituir ou complementar as aulas expositivas.


Conforme está previsto na resolução, são atividades práticas supervisionadas:


  1. Laboratórios;

  2. Atividades em biblioteca;

  3. Iniciação cientifica;

  4. Trabalhos individuais ou em grupo e

  5. Práticas de ensino.


No contexto atual, tanto pesquisa quanto trabalhos acadêmicos podem ser usados para garantir o cumprimento dos dias letivos mínimos, substituindo as aulas expositivas presenciais.


Outro caminho, como terceira possibilidade, é usar a tecnologia; reinterpretando a legislação sobre EAD. Afinal, de acordo com as normas vigentes, aulas em que alunos e docentes compartilham espaços virtuais em tempo real podem ser consideradas aulas presenciais.


Essa interpretação decorre da análise da evolução das normas do EAD. No Decreto 5.622/2005, a modalidade era definida como aquela na qual “estudantes e professores [estão] desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos”; agora, a norma atual, Decreto 9.057/2017, considera à distância apenas o curso que “desenvolva atividades educativas por estudantes e profissionais da educação que estejam em lugares e tempos diversos”.


Noutras palavras, aulas ao vivo, ou ensino síncrono, não são educação a distância nos termos da legislação vigente, pois, apesar de serem ofertadas em lugares diferentes, os acessos não ocorrem em momentos diferentes. Daí, então, surge o espaço para uso da tecnologia por todas as Instituições de Ensino Superior.


Juridicamente, o importante é que em qualquer dos três casos as aulas serão presenciais, ou seja, dispensarão credenciamento específico ou prévia e profunda modificação no PPC do curso. Além disso, poderão ser aplicadas por prazo mais longo e nas situações em que não couber a aplicação da Portaria 343/2020. Contudo, em face da necessidade de preservar o padrão de qualidade do ensino, em todas as situações descritas são necessárias alterações de metodologia e treinamento de profissionais, ainda que limitados diante da urgência.


Treinamento e metodologia, por fim, podem ser resolvidos mediante capacitação interna e ou colaboração com outras instituições, usando cursos online e videoconferência. Um exemplo de rápida atuação neste sentido é o webinar oferecido pela Harvard University, uma excelente e bem vinda iniciativa de colaboração diante da pandemia do coronavírus.


Em suma, as Instituições de Ensino Superior devem preparar-se para adaptar seu regime de oferta de cursos e, em qualquer dos casos, deve registrar essa mudança em seus documentos institucionais.


E como ficam os contratos educacionais?


Muitos contratos educacionais, senão todos, são omissos em relação a alterações decorrentes de casos incomuns e imprevistos. Dessa forma, seria possível pensar em demandas judiciais dos alunos que, ao se sentirem prejudicados em face de suspensão das aulas ou mesmo por não terem aulas presenciais, discutam uma rescisão contratual ou redução de preço de mensalidade. Isso considerando que os valores de mensalidade EAD costumam ser mais baixos.


Esta demanda teria fundamento, mesmo que, civicamente, fosse absurda. E as IES podem ter que se defender mesmo quando houver uma norma legal – um decreto, por exemplo – impondo a suspensão das aulas presenciais.


Em sua defesa, as IES poderiam alegar a clássica exceção de caso fortuito ou o denominado fato do príncipe. O caso fortuito ou força maior está assim previsto no Código Civil Brasileiro:


Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir.

O fato do príncipe, ou factum principis, é definido como: "modalidade de força maior, representada pela inviabilização das atividades empresariais em razão de ato unilateral de autoridade municipal, estatual ou federal, ou, ainda, pela promulgação de ato normativo" (CLT Comentada pelos Juízes do Trabalho da 4ª Região, LTr, 3ª ed., p. 387).


Além disso, mesmo se não fosse caracterizada a excepcionalidade como força maior ou factum principis, prevaleceria a competência dos estabelecimentos de ensino para criar e gerir seus projetos pedagógicos (Art. 12, I, da LDB). Analisando o caso desse ângulo, a alteração do contrato por modificação no formato do ensino ou suspensão de atividades também é lícita.


Na realidade, sob esse fundamento, o Poder Judiciário já permitiu até mesmo a redução de carga-horária. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça do Paraná julgou que:


“… Da análise das provas juntadas aos autos, não se vislumbra os elementos ensejadores da responsabilidade civil, uma vez que às instituições de Ensino Superior é garantida a autonomia didático-científica, nos termos do artigo 209, CF. Ainda, nos termos do artigo 12, Lei 9.394/95, cabem às instituições elaborar suas propostas pedagógicas, desde que respeitadas as normas comuns. Com relação à redução unilateral da carga horária, tal medida não fere as diretrizes do MEC, como apontado pelo parecer lançado pelo Ministério Público Federal (mov. 19.9), não havendo o que ser questionado sob o aspecto formal. […] (TJPR. PR 0027835–41.2016.8.16.0014/0, Data de Publicação: 11/04/2017, grifamos)

Cabe observar que, no presente caso, a situação é ainda mais simples, pois a dispensa de frequência ou a substituição de aulas presenciais por EAD não são propriamente uma redução de carga-horária, inexistindo um dado objetivo para discutir o denominado vício na prestação de serviço.


Apesar da possibilidade de dispensa de frequência ou de suspensão temporária das aulas e dos contratos educacionais, entendemos que uma medida governamental seria relevante nesse momento. Para evitar discussão judicial e dúvidas desnecessárias, o Poder Executivo, em cada nível de ensino, poderia dispensar a frequência ou mesmo determinar que as aulas presenciais não ocorram.


Essa possibilidade, porém, não consta expressamente da Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, mas uma nova lei, preferencialmente federal, poderia ser feita em face da emergência e da necessidade de segurança jurídica.


E como ficam os docentes e seus empregos?


Para os docentes, uma eventual dispensa de frequência ou paralização teria como possíveis consequências, respectivamente, a alteração da relação contratual e a discussão sobre pagamentos de salários.


A modificação do contrato de trabalho ocorreria quando e se adotados os meios de ensino a distância em cursos presenciais. Neste caso, haveria repercussões para a IES, que poderiam ter resistência dos docentes, e para os docentes, que poderiam ser alvo de tentativas de redução ou cortes de salário. Esses temas também merecem artigo específico, que faremos em breve, mas já é possível dizer que essas situações nos contratos de trabalho também podem ser abarcadas por teorias de caso fortuito e força maior.


Quanto a relação de trabalho, deve ser mantida, pois em muitos casos as IES tomam a iniciativa de suspender ou modificar as atividades ou, mesmo nos casos em que os docentes decidirem faltar, caberia a discussão sobre se as faltas seriam justificadas. De nossa parte, pensamos que são, sim, faltas justificadas e que por analogia poderia ser aplicado o Art. 60, § 3º, da Lei 8.213/1991, que prevê a remuneração por 15 dias pelo empregador e, posteriormente, pelo INSS.


Caso seja decretada quarentena ou isolamento, nos termos da Lei de medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública citada acima, não haveria dúvidas quanto a justificativa das faltas, pois a norma determina que, em tais situações “Será considerado falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de ausência ...” (Art. 3º, §3º, da Lei 13.979/2020). O problema é que nem mesmo nesses casos extremos o Poder Público Federal define quem pagará os salários, remetendo, aparentemente, à norma previdenciária mencionada acima.


Em relação a esse tema, aguardamos também uma norma federal para suprir as dúvidas das IES e dos demais empregadores com informações e espera-se também medidas contundentes a favor emprego, como ocorreu na França.


Em caso de adiamentos e mudança de calendário, sugerimos acordos coletivos individuais para criar bancos de horas. Essa medida deve ser tomada agora, para evitar problemas quando da eventual reposição de aulas adiadas.


O que fazer, então?


A crise vivida pelo Brasil e pelo mundo, diante do coronavírus, tornou necessária a suspensão das aulas presenciais. Essa medida era considerada controvertida, mas deve certamente ter sido tomada a partir da análise de especialistas em saúde, como, aliás, está previsto na Lei 13.979/2020 em relação a quarentena e ao isolamento.


O Poder Público demorou um pouco, mas reagiu, permitindo a substituição das aulas presenciais por aulas que usam recursos de tecnologia da informação, o que demonstra a força e importância do EAD.


Ao lado dessa mudança, ofertar ensino presencial com dispensa de frequência é uma opção para quem ainda não modificou seus projetos pedagógicos para introduzir o EAD em seus currículos, inclusive nos cursos de Medicina. Oferecer outras atividades supervisionadas também pode ser considerado nessas circunstâncias.


Os contratos educacionais podem e devem ser modificados diante desse panorama. Sabemos que as obrigações são um processo diferido no tempo, um processo que comporta adaptações e ajustes para manter o objetivo final: a oferta de ensino superior.


Os docentes, em paralelo, devem participar desse processo de adaptação e as questões de direitos de ambas as partes na relação trabalhista e do próprio governo, como garantidor da previdência e da seguridade social, têm de ser discutidas e esclarecidas desde já.


Enfim, é preciso dar uma resposta ao novo contexto e o EAD ou mais, o ensino verdadeiramente híbrido, é uma solução.


Informações Complementares


Confira aqui, na íntegra, a Medida Provisória nº934, do dia 01º de abril de 2020, que estabeleceu normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020.

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