Certamente, o MEC divulgará a informação que o indeferimento do curso de medicina publicado nesta terça-feira, 16 de abril, por meio da Portaria SERES nº 148/2024, respeitou critérios técnicos. Porém, é estranho que depois de tanto tempo, o primeiro curso avaliado seja também o primeiro que conseguiu realizar o vestibular por força de decisão judicial.
Sim, o Ministério da Educação tinha de agir diligentemente e concluir o processo administrativo do curso. Sim, ele poderia deferir ou indeferir o pedido de autorização. Os Juízes não devem fazer esse tipo de análise do mérito administrativo.
Porém, surpreende o momento escolhido para publicação da portaria, até porque existe uma contradição entre o indeferimento e as boas avaliações relatadas sobre o curso. Parece, nesse contexto, que pode ter havido quebra do princípio da impessoalidade e um rigor excessivo com este caso, especificamente.
Em relação ao timing do indeferimento, existem sérios motivos para dúvida. Os processos de medicina mais avançados processualmente, conforme fluxo criado pelo Ministério, pareciam estar agora em uma fase que lhes concedia 45 dias para manifestar sobre a necessidade social e juntar termos de adesão e proposta de contrapartida. Se isto é um fato, nenhum curso teria como ser indeferido agora.
Esta situação pode ser comprovada por documento existente no processo judicial do referido curso, um ofício, documento público, juntado em processo judicial não sigiloso. Nele está escrito:
"[...] 31. Nesse sentido, o processo se encontra na etapa "(ii)" indicada acima, ou seja, foi encaminhada consulta ao Ministério da Saúde, estando pendente ainda de resposta.
32. Isso significa que, no atual estágio de análise, não se tem informações que permitam analisar (i) a relevância e necessidade social da autorização de novo curso naquela localidade; (ii) existência de disponibilidade de campo prática.
33. Ademais, não há, nos autos do processo administrativo, Termo de Adesão e Termo de Contrapartida apresentados em conformidade com a exigência do Ministério da Educação, uma vez que isto só será possível quando se alcançar a etapa "(iii)" indicada acima. [...]"
(Ofício Nº 2117/2024/CGLNRS/GAB/SERES/SERES-MEC, de 01/04/2024, grifo no original)
Como o ofício da Secretaria de Regulação do MEC informou, o processo de autorização acabara de ser encaminhado para “… consulta ao Ministério da Saúde, estando pendente ainda de resposta”. Este ofício, repita-se, é de 1º de abril, motivo pelo qual é difícil acreditar que a consulta já foi respondida pelo Ministério da Saúde; a instituição já exerceu contraditório, juntando documentos; e o MEC, ainda nesse período 15 dias, já indeferiu o pedido.
Também em relação ao tempo, é estranho ver este processo decidido, pois se trata de processo iniciado em 2022, que deve ter decisão judicial também daquele ano. Isso causa surpresa, porque hoje existem processos administrativos mais antigos sem decisão e segundo a Portaria Normativa 21/2017, a tramitação dos processos no sistema eletrônico deveria obedecer a “… ordem cronológica de sua apresentação” (Art. 1º, § 11). Neste caso, o MEC não poderia nem mesmo dizer que está cumprindo ordem judicial, pois descumpre muitas outras, provavelmente de processos mais antigos, inclusive do ano de 2021.
Esses dois fatos, somados à cassação pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região da portaria que tentava abrir supervisão e barrar o curso, fazem parecer que o indeferimento foi, na verdade, uma medida específica para reagir ao Poder Judiciário e criar embaraços para a Instituição de Ensino. Talvez, uma seja medida “bem-intencionada”, porque o MEC deve ter entendimento de que o curso será um precedente ruim para muitos casos represados na SERES, será um precedente que lhe impede de seguir com atrasos que já superam 6 meses ou um ano. Contudo, dificilmente o indeferimento resistirá ao controle de legalidade.
E isso precisa ser dito por que, a ação judicial demonstra que o curso já possui avaliações positivas e talvez não fosse possível indeferi-lo utilizando critérios objetivos de qualidade.
Aliás, nesse campo, da análise regulatória, pode ter ocorrido também uma ilegalidade. O MEC e o MS têm usado como referência para as “consultas” sobre necessidade social, a proporção de médicos por 1000 habitantes. Nas respostas que deu, o Ministério da Saúde pontua se a cidade tem uma proporção maior ou menor que aquela sugerida pela OCDE, tal como foi pontuado na documentação que embasa o Edital de Chamamento 01/2023*.
Brasília, a cidade na qual está localizado o curso indeferido, tem uma boa proporção de médicos por habitantes e isso fez a cidade ser retirada do edital. Sendo assim, o fato do curso negado estar lá pode indicar que o MEC continua excluindo de maneira sumária pedidos de autorização fora das cidades listadas no chamamento público. Talvez, o motivo tenha mudado apenas do “estar ou não no edital” para o “ter ou não a proporção da OCDE”, mas, na prática, a SERES mantém sua posição.
Por fim, cabe dizer que se o motivo de indeferimento for a dita proporção de médicos por habitante, o MEC pode incorrer em gravíssimo descumprimento de decisão do STF, pois na cautelar de 22 de dezembro de 2023, na ADC 81, o relator, Min Gilmar Mendes, afirmou:
"[...] De fato, a possibilidade de rejeição sumária dos pedidos administrativos de instalação de curso ou de acréscimo de vagas em município distinto daqueles pré-selecionados no Edital de Chamamento Público 1/2023, prevista originalmente no art. 2º, caput e parágrafo único, da Portaria SERES/MEC 397/2023 realmente afrontava o que foi determinado pela deliberação cautelar.
Nesse contexto, todo o raciocínio subjacente à deliberação cautelar parte justamente da premissa segundo a qual razões de segurança jurídica impõem que seja assegurada às instituições de ensino que ultrapassaram a fase inicial de análise documental a que se refere o art. 19, § 1º do Decreto 9.235/2017 a oportunidade de comprovar, no bojo do processo administrativo em que pleiteiam a abertura/expansão de vagas em cursos de graduação de medicina, a existência de interesse social em sua pretensão, ainda que localizadas em municipalidades não contempladas por editais de chamamento público.
Trata-se de análise que deve ser realizada caso a caso e sempre com respeito ao contraditório, como medida de realização do devido processo legal administrativo. [...]" (Grifo no original)
Se negligenciou o contraditório e usou o mesmo critério do edital para indeferir um curso de medicina, o Ministério da Educação impôs, sumariamente, seus critérios genéricos. Assim, mesmo sem dizer expressamente que aplica o edital de chamamento público, acaba descumprindo a decisão do STF.
A expectativa agora é que o Conselho Nacional de Educação (CNE), que receberá o recurso administrativo, avalie bem essa situação. Ele tem a isenção e a técnica necessárias para fazer a correção das irregularidades. Além disso, o assunto deve ser levado ao STF, que apreciará o fato no maior rigor jurídico.
Portanto, o indeferimento do curso de medicina ocorrido hoje merece ser esclarecido e a União ou o MEC deveriam fazer isso. Afinal, com tantos cursos sendo avaliados haverá indeferimentos, mas este não parece ser o caso do curso em questão.
* Na Nota Técnica Conjunta nº 3/2023/DPR/SERES/SERES, sobre o Edital 01/2023, o MEC usa a mesma proporção usada nas respostas do Ministério da Saúde, ver parágrafo 3.3.5.
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