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Edgar Jacobs

Política pública ou “vale tudo”: medicina e a necessidade social

Atualizado: 7 de nov.

(Artigo modificado em 7 de novembro)


A recente discussão sobre os cursos de medicina no MEC tem como um de seus pontos centrais a comprovação da necessidade social. Desde a decisão do STF na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 81, que permitiu o seguimento de mais de uma centena de processos administrativos, o Ministério da Educação impõe obstáculos adicionais para o cumprimento desse quesito que podem ser interpretados como tentativas de restringir a abertura de novos cursos de medicina.

A situação é preocupante, pois essa postura parece ter surgido apesar das avaliações de qualidade já realizadas, que indicavam a viabilidade dos cursos. Se confirmado, estaríamos diante de uma postura de “vale tudo”, na qual se criam barreiras de qualquer forma para limitar a expansão dos cursos, ainda que os mesmos tenham sido aprovados em critérios prévios de qualidade.

Essas restrições não afetam apenas as Instituições de Ensino, que possuem um interesse legítimo na criação de novos cursos. A sociedade local também perde com isso, tanto economicamente, pela geração de empregos e pela movimentação do comércio local, quanto socialmente, com a participação dos estudantes e docentes em atividades de saúde e apoio à comunidade.

Como foi dito inicialmente, um dos obstáculos é a forma como está sendo conduzida a análise da relevância e da necessidade social, um aspecto previsto pela Lei 12.871/2013 e que, segundo o STF, deve ser parte essencial da avaliação dos novos cursos. A Lei determina que essa avaliação deve ocorrer no âmbito da região de saúde, levando em conta o município e seu entorno. No entanto, a Portaria 531/ 2023 limita essa análise apenas ao município.

A regionalização é um princípio do Sistema Único de Saúde (SUS) e está prevista na Lei do SUS, na prática viabiliza a distribuição e a integração dos serviços de saúde no Brasil. Os serviços não precisam ser replicados em todas as cidades, mas concentrados em pontos estratégicos para atendimento regional. Trocar a análise da necessidade social do sistema de saúde de uma região para o âmbito municipal é, no mínimo, questionável. Dessa forma, não parece existir uma justificativa técnica para esta restrição no caso dos cursos de medicina.

Mesmo assim, o MEC apresentou duas justificativas para essa limitação. Na primeira, afirma que o próprio STF teria exigido essa restrição geográfica. Em documento oficial[i], o MEC mencionou que a Portaria 531/2023 se basearia na "literalidade" da decisão da ADC 81. Ou seja, sua norma é apenas um resultado de uma determinação expressa do Tribunal.

No entanto, essa interpretação não faz sentido, pois o STF nunca emitiu um parecer sobre a delimitação geográfica para a análise da necessidade social. Muito pelo contrário, na ADC 81, a Suprema Corte sempre se refere à Lei 12.871/2013 e, via de consequência, à região de saúde e ao entorno dos municípios citados nos parágrafos 1º e 7º, do Art. 3º desta legislação. Além disso, em texto clássico, a jurista Maria Helena Diniz classifica a interpretação literal como uma leitura dos leigos[ii], segundo ela. “restringir-se à técnica literal é desconhecer os condicionamentos e a finalidade do processo interpretativo”. Além disso, no caso da ADC 81, esta abordagem certamente não é a mais adequada para extrair sentido de uma decisão de mais de 100 páginas

A primeira explicação foi tão contestável que o MEC apresentou uma segunda narrativa, uma "pós-verdade", revisando a motivação inicial. Em documento de setembro de 2024[iii], o MEC expôs um novo entendimento, indicando dois critérios para a pré-seleção dos municípios: (i) aqueles com concentração de médicos inferior a 3,73 por habitante; e (ii) aqueles situados em regiões de saúde pré-selecionadas no edital de 2023. Ou seja, o problema não era mais um comando literal do STF, ao contrário, o MEC sempre tinha considerado a região de saúde como um de seus critérios. E nessa versão a escolha por município seria apenas um acréscimo, um complemento às regiões escolhidas no edital. Esse “plot twist” expõe a falta de coerência e clareza na argumentação.

O problema é que, além de surpreendente, esta segunda abordagem também levanta questões. A existência de dois critérios quebra os princípios de isonomia e impessoalidade. Fere a igualdade ao favorecer municípios específicos selecionados no Edital 01/2023 e contraria a impessoalidade, pois o critério foi criado quando o MEC já sabia quais e quantos cursos seriam beneficiados.

Em resumo, parece haver uma tentativa de justificar o que, em essência, não se justifica, criando uma barreira regulatória desnecessária e incoerente. Não é correto afirmar que o STF determinou expressamente que a análise de necessidade social seja limitada ao município e, ao mesmo tempo, argumentar que o MEC incluiu a região de saúde em um de seus critérios. Se o STF tivesse imposto um parâmetro, não haveria espaço para dois critérios geográficos. E se a determinação literal citada em ofício do MEC não existir, a primeira interpretação mencionada acima é, no mínimo, muito equivocada.

Essas inconsistências reforçam a necessidade de corrigir o problema, tanto do ponto de vista jurídico quanto ético. Não se deve impor obstáculos arbitrários à criação de novos cursos de medicina.

Enfim, regulação não é restrição. Não vale tudo para restringir a abertura de cursos. Política publica tem que respeitar as leis e quem a defende tem que gerar confiança, não incertezas. Por isso, bons projetos devem ser autorizados sempre que cumprirem as normas vigentes na época do pedido. Esse é o caminho para que a sociedade se beneficie de mais opções, preços justos e serviços de qualidade.


[i] O OFÍCIO nº 5299/2024/CGLNRS/GAB/SERES/SERES-MEC, de agosto de 2024 afirmou que:

9.       Por esta razão, foi editada a Portaria nº 531/2023 que, em seu artigo 2º, prevê o seguinte:

Art. 2º Para o atendimento ao § 1º do art. 3º da Lei nº 12.871, de 2013, será verificado se o município em que se pretende ofertar novo curso de Medicina ou aumentar vaga em curso de Medicina já existente atende aos critérios de: (...)

10.     Tal regra tem como contexto a literalidade da decisão proferida no âmbito da ADC 81, também reproduzida:

(...) devendo as diversas instâncias técnicas convocadas a se pronunciar, nas etapas seguintes do processo de credenciamento/autorização, observar se o Município e o novo curso de medicina atendem integralmente aos critérios previstos nos parágrafos 1º, 2º e 7º do art. 3º da Lei 12.871/2013; e

[…] (grifo no original)

[ii]  DINIZ, Maria Helena. Interpretação literal: uma leitura dos leigos. Revista do Advogado, p. 94-98, 2002.

[iii]  Nas INFORMAÇÕES n. 01584/2024/CONJUR-MEC/CGU/AGU, datadas de setembro de 2024, consta:

40.       Do contrário, averigua-se dos termos da Nota Técnica nº 81/2023/CGLNRS/GAB/SERES/SERES a existência de dois critérios de pré-seleção dos municípios a serem contemplados pelo chamamento público atendendo ao art. 3º, §1º, inciso I, da Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013​: […]

41.       São estes: (i) Municípios cuja concentração de médico por habitante seja inferior a 3,73; ou (ii) encontrar-se em regiões de saúde pré-selecionadas no Edital nº 01, de 4 de outubro de 2023.

42.       Pelo exposto, caso o município supere a média de 3,73 médicos por habitantes, seria possível a sua inclusão no chamamento desde que a região de saúde que se encontre estivesse pré-selecionados no Edital nº 01, de 4 de outubro de 2023, o que não é o caso e não respalda a argumentação da instituição.

 


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