Por que falar em “nova onda” de liminares — e por que isso importa?
- Edgar Jacobs
- há 1 dia
- 6 min de leitura
As palavras, quando bem escolhidas, pesam. É o caso da recente reportagem de um grande jornal brasileiro, cujo título inspira este texto. A expressão sugere uma nova onda de decisões judiciais favoráveis à abertura de cursos de Medicina. Mas o que se vê, em muitos casos, é algo distinto: não há propriamente uma nova leva de decisões, mas sim o cumprimento – tardio – de ordens judiciais concedidas há meses.
Também não é totalmente preciso falar em “liminares”. Muitas das determinações que o MEC passou a executar agora não são medidas provisórias, mas sentenças de primeiro grau e acórdãos de tribunais federais – decisões estáveis, já consolidadas e de caráter definitivo dentro de sua instância.
Mais uma vez, a União – especialmente o MEC – opera com habilidade o campo informacional. Antes mesmo da reportagem, o próprio Ministério já afirmava, em nota técnica e declarações públicas, que a “judicialização” estaria prejudicando a política de expansão da Medicina. O texto jornalístico apenas ecoa essa linha. Assim, transfere-se o foco para as decisões judiciais, quando elas apenas reconhecem ilegalidades administrativas que exigem a reanálise dos pedidos de autorização.
Esse movimento também revela como a discussão pública sobre “judicialização” tem sido construída de forma seletiva. Em vez de enfrentar as causas estruturais dos atrasos e contradições internas da própria política regulatória, a narrativa tende a simplificar o problema, atribuindo ao Judiciário um protagonismo que ele não buscou e que só se manifesta diante de omissões administrativas reiteradas.
Os fatos mostram outra coisa: em pelo menos cinco processos, o próprio MEC revisou erros de cálculo – seus ou, segundo afirma, do Ministério da Saúde. Essa pequena amostra retrata bem o que realmente ocorreu. Além disso, diversas decisões têm reconhecido que os critérios da Portaria nº 531, embora apresentem pontos razoáveis, foram aplicados de forma retroativa e, em alguns casos, contrariam a Lei nº 12.871/2013, que rege a matéria.
Não surpreende, portanto, que muitos desses equívocos tenham sido identificados apenas após sucessivas provocações administrativas e judiciais. A própria dinâmica dos processos demonstra que a falta de padronização metodológica abriu margem para resultados divergentes, o que, inevitavelmente, ampliou o tempo de debate.
As correções – feitas com rapidez quando diziam respeito ao Ministério da Saúde – levaram meses no âmbito do Ministério da Educação, sempre mais de seis e, em alguns casos, perto de um ano. As decisões judiciais também não foram cumpridas de imediato: houve descumprimento direto, interposição sucessiva de recursos e até situações de cumprimento meramente formal, marcado por erros evidentes. Esse conjunto de práticas passou a compor o repertório adotado pelo MEC.
Apesar de haver forte interesse de instituições já estabelecidas em preservar sua reserva de mercado – algo compreensível quando não se identificam práticas anticoncorrenciais –, não parece haver uma ação deliberada do Poder Público para favorecer esse grupo.
O que se percebe é outra convicção: o Ministério realmente entende que cursos de Medicina avaliados com conceitos excelentes por comissões de especialistas por ele próprio nomeados representam um problema qualitativo. Paradoxalmente, considera-os mais preocupantes do que cursos recentemente avaliados com notas abaixo do satisfatório, que não sofreram qualquer restrição.
Outra hipótese, contudo, é que o edital de chamamento tenha sido suspenso por falhas no próprio modelo escolhido para autorizar novos cursos. Esse ponto apareceu de forma muito clara na audiência pública da ADC nº 81. Na ocasião, o Ministro Relator, Gilmar Mendes, perguntou à Dra. Ludhmila Hajjar se o chamamento público seria indispensável para assegurar qualidade ou se os critérios técnicos previstos na Lei nº 12.871 já seriam suficientes. A resposta dela foi direta:
“A minha opinião em relação à necessidade do chamamento. Eu não o vejo como necessário. Entendo que, em 2013, o chamamento público, por meio de edital, era uma necessidade para atender a regionalização daquelas necessidades naquele momento.”
Ao final do bloco de exposições, o próprio Relator comentou:
“Eu gostei imensamente, eu gostei de várias exposições, mas de uma colocação que a Doutora Ludhmila fez sobre a mudança de paradigmas. Os fatos vão mudando e nós precisamos atualizar. As políticas públicas precisam de ser também constantemente reavaliadas”.
Essa, porém, não foi a posição que prevaleceu no julgamento da ADC, que manteve a validade dos chamamentos públicos. Ainda assim, ficou evidente a dúvida quanto à efetividade do modelo por editais – e esse pode ser o verdadeiro motivo da suspensão do chamamento atual.
Em paralelo, a mesma expositora observou que:
“A OCDE acha determinante que não haja um número, porque isso é individualizado, depende do país, depende da necessidade circunstancial, temporal, relacionada com a epidemiologia. Não há um número. Um número ideal é 4? É 3,5? 2,38 é muito? Nós não podemos afirmar.”
O tema da densidade médica também foi abordado pelo representante da Associação Brasileira de Educação Médica, Dr. Sandro Schreiber de Oliveira, que enfatizou o óbvio: os dados atuais da OCDE não podem ser usados como metas futuras para o Brasil. Nas palavras da ABEM:
Doutor Nésio [Nésio Fernandes, Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde] trouxe, com muita clareza, que olhamos para média de hoje e projeta lá em 2025, 2030, a média que hoje os países da OCDE têm – com todas essas ressalvas que eu já fiz, porque são países muito diferentes do Brasil, mas OK para tomar como parâmetro. Olhamos para isso no futuro, mas no futuro nem mesmo os da OCDE terão essa média. Portanto, são dados difíceis de serem levados em consideração para uma tomada de decisão do que temos hoje.
Apesar disso, o MEC adotou o critério isolado de médicos por habitantes, baseado na média atual da OCDE, como seu único parâmetro para aferir a necessidade social. O que demonstra um ponto de discordância entre a opinião técnica e a norma regulatório e justifica, de certa forma, que existam decisões judiciais sobre a aplicação desse critério.
Esse desencontro entre a orientação técnica apresentada na audiência e o critério único adotado pelo MEC ajuda a compreender por que o tema acabou no Judiciário. Não se trata de um movimento artificial ou provocado por disputas de mercado, mas de uma reação previsível a parâmetros frágeis, retroativos e muitas vezes incompatíveis com a lei.
A “judicialização”, portanto, funciona como uma verdadeira cortina de fumaça institucional: expõe o Judiciário como responsável pelo impasse, enquanto oculta o ponto central – a série de equívocos administrativos que alimentou o conflito, desde erros de cálculo até a adoção de critérios retroativos e sem respaldo legal claro.
Mas desacreditar o Poder Judiciário não é bom para o país. E causa certa perplexidade que justamente a expositora que divergiu do critério hoje adotado pelo MEC, e cuja análise técnica foi valorizada na audiência, tenha depois concedido entrevista – no mesmo veículo jornalístico – falando em uma suposta “máfia de liminares”. Trata-se de uma expressão excessivamente dura, que revela mais desconexão do que esclarecimento.
O tema já foi devidamente enfrentado, inclusive com nota de desagravo no mês de março. A afirmação, feita sem o devido cuidado, sugere a existência de conduta criminosa e atinge instituições, advogados e até magistrados que possuem competência territorial e técnica para decidir esses casos, o que contribui para tensionar ainda mais o debate e – conscientemente ou não – para tentar influenciar o julgador, ainda que sem êxito em comprometer sua imparcialidade.
Agora, a abordagem se repete: sustenta-se que liminares e decisões judiciais estariam atrapalhando a política pública. Contudo, quando o edital suspenso foi publicado, no início de 2023, sequer havia decisão do STF sobre o tema, e o volume de ações já era conhecido e crescente. A União sabia disso. Na verdade, a própria equipe técnica do MEC, do Ministério do Planejamento e do IPEA já havia projetado a aprovação de muitas vagas, como mostramos em artigo anterior.
O problema, portanto, não é uma nova onda de decisões nem qualquer interferência externa imprevista. O problema é a falta de planejamento ou uma mudança de orientação dentro do próprio MEC. Suspender um certame por fatores amplamente mapeados desde o início é bem menos justificável. E, se a paralisação decorrer de uma opção administrativa – ainda que legítima – pode gerar inúmeras indenizações, plenamente justificadas pelos investimentos feitos com base na confiança no Poder Público.
No fundo, o debate sobre a chamada “judicialização” diz menos sobre o Judiciário e mais sobre a condução administrativa da política de formação médica. As ações judiciais não surgiram por acaso; elas respondem a critérios tecnicamente contestáveis, decisões retroativas, erros de cálculo e recuos que poderiam ter sido evitados.
Reconhecer isso não enfraquece o MEC. Ao contrário, abre espaço para uma regulação mais estável, técnica e previsível. O país precisa de expansão responsável, segurança jurídica e coerência institucional – não de narrativas que desviam o foco dos verdadeiros desafios.

Gostou deste texto? Faça parte de nossa lista de e-mail para receber regularmente materiais como este. Fazendo seu cadastro você também pode receber mais informações sobre nossos cursos, que oferecem informações atualizadas e metodologias adaptadas aos participantes.
Temos cursos regulares, já consagrados, dos quais já participaram mais de 800 profissionais das IES. Também modelamos cursos in company sobre temas gerais relacionados ao Direito da Educação Superior, ou mais específicos. Conheça nossas opções e participe de nossos eventos.
