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Juarez Monteiro e Edgar Jacobs

As vagas pendentes de medicina e a nova onda de processos judiciais

Desde a modulação proposta pelo STF na ADC 81/DF em 2023, até hoje, foram deferidos 35 pedidos de autorização de cursos de medicina. Destes, todos tiveram autorização do MEC para ofertar somente 60 vagas. Pode-se dizer “somente” porque segundo o estudo utilizado para o edital de chamamento público do Programa Mais Médicos este é o número mínimo para garantir a sustentabilidade financeira de um curso de medicina.

Como isso foi calculado? A Nota Técnica Conjunta nº 3/2023/ DPR/ SERES/ SERES, assinada pelo MEC, Ministério do Planejamento e IPEA, detalha:

3.4.11. Uma boa referência para isso é a distribuição recente de coortes para cursos privados de graduação em Medicina no país: de acordo com o Censo da Educação Superior de 2021, a média de estudantes por ingresso em faculdade privada no Brasil naquele ano foi de 92, a mediana foi de 76 e a menor coorte observada tinha 53 discentes; desta forma, foi definido que 60 seria o tamanho mínimo para a viabilidade econômica de abertura de novos cursos de graduação em Medicina. (grifamos)

Não é preciso ser um especialista em estatística nem ter um vasto entendimento sobre cursos de medicina para perceber o erro. Os dados genéricos e datados, desprezam desigualdades regionais, diferenças de mensalidades, de remuneração docente e vários outros fatores, como a receita de serviços agregados. Além disso, a média de ingresso dos alunos no ano de 2021 não é necessariamente um bom indicador da viabilidade econômica de cursos superiores ao longo do tempo.

Em defesa da Nota Técnica deve ser dito que o dado não foi produzido para aplicação ampla. Coerentemente, seus criadores buscavam obter também “uma uniformidade possibilitadora da comparabilidade entre as propostas”, conforme relata a Nota Técnica nº 22/2023/ GAB/ SERES/ SERES. Nesse sentido, a padronização poderia até fazer sentido para uma licitação sob forma de chamamento público, entretanto não cabe para os cursos validados pelo STF fora da política de chamamentos.

Este, porém, não é o fato mais absurdo: 60 vagas, o número definido como mínimo para um curso “economicamente viável”, foi imposto como o máximo de vagas pela Portaria 531/2023. Assim, aquele número que já era contestável como mínimo para os editais de chamamento se tornou o máximo de vagas em cursos de medicina. Uma mudança inexplicável.

Da teoria à prática

Diante dessa evidente incoerência, surge a pergunta: Qual seria o número correto de vagas para cada curso de medicina? A resposta passa pela revisão de uma estratégia inadequada. Por óbvio, não se deve aplicar máximos e mínimos teóricos e abstratos.

Essa abordagem cria uma falsa equidade, igualando projetos e contextos desiguais. Além disso, fere os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Em sentido estrito, há desproporcionalidade em face da negligência quanto à proporção entre oportunidades de prática e vagas concedidas para cada localidade. E se a atribuição de vagas não atende a finalidade de bom uso dos recursos de saúde disponíveis, fica prejudicada, também, a razoabilidade.

O mesmo raciocínio vale em relação à infraestrutura disponibilizada por cada instituição de ensino, que varia consideravelmente. Seria razoável destinar as mesmas 60 vagas para cursos com estrutura de ensino e até número de docentes previstos de maneira distinta?

O correto seria avaliar cada caso de maneira individualizada, conforme a proposta de cada instituição e a infraestrutura disponível de cada localidade. O foco nas autorizações deve estar na qualidade do projeto pedagógico e na avaliação das condições de oferta. Isso inclui considerar fatores como os serviços e equipamentos de saúde disponíveis na cidade ou região do curso. Sendo assim, a avaliação in loco sempre será mais justa e eficiente que o uso de um patamar uniformizado.

Confirmando esta afirmação, o Conselho Nacional de Educação, CNE, recentemente afirmou que:

...não se pode entender que a recomendação de aumento de vagas feita por uma comissão de especialistas da qualidade dos que compõem a Comissão de Monitoramento, que vai ao local analisar as condições de oferta, seja simplesmente desconsiderada, como se seu relato de nada valesse, prevalecendo a decisão de gabinete baseada em relatórios imprecisos e desligados da realidade da recorrente. (Parecer CNE/CES 326/2024)

Apesar do caso acima tratar de aumento de vagas, o texto e o contexto indicam a importância da análise in loco em contraponto à "decisão de gabinete".

Efeitos quanto à qualidade e aos investimentos

Garantir um número de vagas proporcional às condições de oferta incentiva ainda os investimentos em qualidade, por isso, na prática, é mais eficiente do que valorizar uma falsa igualdade entre as autorizações concedidas.

Proteger o planejamento da própria instituição é um meio para assegurar a qualidade dos cursos. A esse respeito, o CNE já afirmou que:

[…] Não é ocioso ressaltar ainda que uma IES, quando planeja ofertar determinado curso, o faz dentro de todo um projeto institucional que envolve várias dimensões, incluindo a de capacidade econômico-financeira, cuja sustentação está diretamente ligada à quantidade de vagas originalmente projetada. Reduzir essas vagas, portanto, é comprometer a inteireza da proposta institucional como um todo, afetando irremediavelmente a qualidade exigida para o curso.[…] (Parecer CNE/CES nº 135/2019, grifamos)

Em sentido contrário, ainda conforme o CNE, há um efeito perverso na padronização, supostamente isonômica, da concessão de vagas: o desestímulo aos investimentos. Nesse sentido, o Órgão decidiu em 2024 que:

…concorda-se que a recorrente teve seu direito suprimido, em parte, ante a uma recomendação da Conjur/MEC, acima mencionada, com o fito de atender o tal critério isonômico na distribuição do número de vagas. Os critérios estabelecidos parecem privilegiar a orientação que não serve para garantir que as vagas se destinem às instituições que possuem experiência, cursos superiores reconhecidos e bem avaliados. Mas, os tais critérios isonômicos desestimulam as IES que fazem grandes investimentos, são bem avaliadas e preenchem todos os requisitos legais e normativos, como a recorrente. (Parecer CNE/CES 317/2024, grifamos)

Portanto, a escolha de um teto de vagas padronizado não favorece a qualidade e os investimentos nos cursos de medicina.

Um grande desperdício

O limite de 60 vagas ainda carrega um componente indesejável para a saúde pública: o desperdício.

Se o MEC entende que os campos de prática de medicina — normalmente contados como número de leitos disponíveis — são um ativo relevante para treinamento dos futuros médicos, cada leito desconsiderado para que um curso fique restrito ao máximo de vagas é um grande desperdício. À cada cinco leitos negligenciados, segundo a própria lógica do MEC, perde-se a oportunidade de formar mais um médico.

Único estudo feito sobre o tema, a mencionada Nota Técnica Conjunta nº 3/2023/ DPR/ SERES/ SERES, explica que: “A quantidade total de leitos disponíveis para campo de prática não parece ser impeditiva para tal expansão, mas a distribuição geográfica das novas vagas se coloca como um desafio” (item 3.3.11).

No caso dos cursos autorizados a partir da decisão do STF, a necessidade social, que guia a distribuição geográfica almejada no Programa Mais Médicos, foi avaliada. Portanto, tendo sido vencido o desafio de encontrar regiões com necessidade social para os cursos, não era racional limitar as vagas sem considerar os recursos de saúde em cada uma dessas localidades.

Dessa forma, o corte de vagas além das 60 autorizadas se mostra como um grande desserviço à saúde no Brasil.

Mais discussões à vista

Diante de tantas inconsistências, é inevitável que a questão das vagas para cursos de Medicina continue sendo debatida, tanto no âmbito do CNE quanto no Judiciário. A Portaria 531/2023, que já é objeto de contestação, certamente será alvo de novas ações judiciais.

Parece que a "regulação de confronto" prevalecerá, gerando incerteza ao estabelecer limites sem critérios robustos e barreiras mais baseadas em estatísticas teóricas do que em fatos verificados individualmente.

Enfim, o MEC, ao tentar regular o mercado, acaba fomentando o que considera um problema: a judicialização de suas decisões. E o saldo negativo, de vagas ofertadas e de segurança jurídica, será suportado por toda a sociedade.


Leia também nosso artigo recente no prestigioso site CONJUR:



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