Por Edgar Jacobs
Em apresentação promovida pelo Ministério da Educação e pelo Ministério da Saúde, no último dia 4 de outubro, foi divulgada a necessidade de que, nos próximos dez anos, "...o Brasil ofertasse aproximadamente 10 mil novas vagas em cursos de graduação em medicina para alcançar a média da OCDE", uma proporção de 3,3 médicos por mil habitantes.
Esse número total de médicos, porém, parece mais um teto do que uma meta. Afinal, sem os chamamentos do Programa Mais Médicos e com novos cursos criados a partir de processos regulatórios conduzidos pelo MEC, certamente teríamos mais de 10 mil médicos para complementar nossa força de trabalho. Dessa forma, o que poderia parecer um objetivo ousado é, na verdade, um limite máximo, um teto para crescimento do número de profissionais.
A limitação de vagas em cursos de medicina também é um tópico de discussão em outros países. A título de exemplo, em 12 de setembro de 2023, o Parlamento inglês divulgou um estudo que associa essa restrição à realidade de que "... o Reino Unido não forma médicos em número suficiente para manter um suprimento estável sem a necessidade de recrutar profissionais qualificados do exterior". Lá, esse limite, ou "cap", é denominado "intake target", ou meta de admissão, em tradução livre, portanto, existe a mesma confusão entre objetivo e teto.
O Reino Unido possui um número de médicos por 1.000 habitantes bem maior que o brasileiro — cerca de um ponto percentual a mais — e ele foi a país escolhido como referência pelo Programa Mais Médicos, em 2013. Por isso, a informação sobre a necessidade de expansão é relevante, especialmente em um contexto no qual a decisão do STF sobre a abertura de novos cursos de medicina pode restringir a oferta de vagas para estudantes nos próximos anos.
A discussão do Supremo Tribunal ocorre nas ações ADC 81 e ADI 7.187 e já teve medida cautelar concedida para impedir a abertura de novos processos de autorização. Além disso, agora existem quatro votos, todos considerando a legalidade da restrição criada em favor dos chamamentos públicos, e dois deles indicaram que nem mesmo os processos de autorização em andamento devem continuar.
O direcionamento da análise de mérito não deve mudar, até porque está baseado em voto muito bem redigido e fundamentado do ministro Gilmar Mendes. Mas os dados existentes sobre densidade médica como um todo no país talvez possam sensibilizar os ministros para necessidade de abrir o máximo possível de vagas nos próximos anos, o que só pode ser feito se os pedidos de autorização já protocolados tramitarem até o final e, quando de comprovada qualidade, criarem cursos de medicina.
Além da situação inglesa narrada no início, aparentemente existem dados disponíveis no Brasil que justificam essa preocupação. Uma dessas informações é exposta por um importante repositório de dados chamado "Statista", o site contém o detalhamento de uma queda na proporção de médicos por habitantes (densidade médica) entre o ano de 2020 e 2022. Depois de subir de 2,18 para 2,49 entre 2018 e 2020, a taxa caiu para 2,41 em 2022.
Chama bastante a atenção o fato de que o site cita várias fontes nacionais, mas nenhuma delas foi usada nas ações do STF. Ou melhor, foram usadas, mas não para mostrar essa queda. O estudo Demografia Médica no Brasil 2023, por exemplo, é citado no site e confirma os dados de 2022 (na página 39 consta a taxa de 2,41), esta pesquisa foi inclusive citada nos votos dos processos constitucionais. Porém, o estudo, focado em diferenças entre interior e capital e outras questões, não traz em nenhuma de suas páginas os dados que demonstrariam a queda no número total de médicos por 1000 habitantes no Brasil naquele período.
A redução não é absurda e, como dito, o estudo não tinha foco em analisar a densidade ao longo dos anos. Todavia, para analisar o argumento de que a política de chamamentos visando a interiorização dos profissionais era proporcional e adequada seria essencial ponderar que a restrição criada pelo Mais Médicos não prejudica nossa proporção de médicos por habitantes. Como visto, entretanto o "Mais Médicos", na prática, terminou gerando "Menos Médicos".
Essa constatação é reforçada pela citada comparação com o Reino Unido. Em 2013, conforme exposição de motivos da medida provisória que se transformou na Lei do Programa Mais Médicos (Lei 12.871/2013), o Brasil tinha uma densidade médica de 1,8 médicos por 1.000 habitantes, enquanto no Reino Unido essa proporção era de 2,7. Portanto, estávamos a 0,9 do país de referência. Hoje, os dados mais recentes da OCDE indicam que país europeu tem a taxa de 3,2 e o Brasil, como exposto no gráfico acima, tem 2,41, o que configura algo próximo de uma diferença de 0,8 entre as taxas dos países.
Ora, uma redução de 0,1 ponto percentual é muito baixa. Aproximar-se tão pouco de país de referência após dez anos da Lei 12.871/2013 é um resultado ruim.
E este resultado torna-se ainda mais negativo porque, como exposto no início deste artigo, a taxa de 3,1 não permitiu que o Reino Unido gozasse de uma boa oferta de formação médica. Ao contrário, nos últimos anos o que se discute é como expandir as vagas ofertadas naquele país.
Esses dados simples, que podem certamente ser explorados por profissionais mais qualificado que nós para esta tarefa, demonstram que chancelar uma política que reduza o número de vagas em cursos de medicina no Brasil agora pode ser um grave problema.
Não bastasse essa perspectiva, vale dizer que as "intake targets" britânicas não são o único caso de limitação de vagas contestado nos países europeus. Problemas quanto a desproporcionalidade desses limites, aliás, também foram registrados em Portugal, país sobre o qual já relatamos os efeitos do numerus clausus na área de ensino médico.
Outro caso equiparável foi registrado e analisado pelo Tribunal Constitucional Alemão. Trata-se de uma situação envolvendo a área de Odontologia e o acesso dos profissionais ao mercado, sobre o qual também já fizemos um artigo, no qual incluímos citação no sentido de que a "…Corte Constitucional acabou por infirmar o prognóstico do legislador” e liberou a “inscrição de dentistas nas caixas de assistência" (referência ao caso Kassenzahnarzt-Urteil, descrito por Gilmar Mendes. Controle de constitucionalidade: hermenêutica constitucional e revisão de fatos e prognoses legislativos pelo órgão judicial. Revista Jurídica da Presidência, v. 1, nº 8, 2000. P. 9).
No Brasil, o prognóstico feito pela Lei 12.871/2013, nosso "prognóstico do legislador" não está nem perto de ser materializado. Ainda estamos longe do Reino Unido em relação ao número de médicos por 1.000 habitantes e já constatamos que a meta nem mesmo é tão ambiciosa, pois também os britânicos sofrem com a falta de médicos formados no país. E o mais grave é que agora a "meta" é atingirmos patamar similar ao inglês apenas em 2033, daqui a uma década.
Não sou nenhum especialista em dados, mas fico aqui pensando que devia ter relacionado todas essas informações antes mesmo dos novos números do MEC. Penso, também, que as entidades públicas envolvidas nos processos constitucionais poderiam ter apresentado e discutido a comparação ano a ano sobre a densidade médica.
Além disso, a experiência internacional também deveria ter entrado no debate. No Brasil, de certa forma, já temos um número de vagas controlado. Na prática, há um numerus clausus definido por região ou cidade, com apoio do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde. Com base nisso, o MEC analisa, caso e caso, os projetos e defere um número de vagas anuais limitado. Em um contexto assim, é impossível dizer que haverá cidades ou regiões com excesso de oferta após a análise dos processos de autorização em andamento.
Mas existe outra forma de encarar a situação atual. Talvez os processos constitucionais tenham esse poder especial de despertarem uma análise dinâmica, por isso, só agora, com dois pedidos de vista, foi possível ver com clareza todo o quadro.
Nesse sentido, um olhar atualizado também revela que, em decorrência da avaliação criteriosa do MEC, do CNE e do MS não haverá problemas se tramitarem 200 ou 300 processos. Até porque, muitos deles podem não ser aprovados e os que forem, ainda muito bons, esbarrarão no numerus clausus que criamos a partir da experiência dos últimos anos. Essa pode ser uma nova forma e ver o caso.
Em resumo, o "cap" brasileiro para os cursos de medicina deve ser visto como um limitador perigoso. Nesse sentido, é digno de nota que em 2013 nossa meta fosse nos aproximarmos dos números britânicos e, agora, o objetivo "novo" é atingir em dez anos, uma proporção coincidentemente igual a que o Reino Unido têm hoje. Esse fato mostra o desencontro de prognósticos e pode até ajudar a moldar a visão que está se formando no STF.
Limitar o crescimento de toda uma área profissional por um prazo longuíssimo para distribuir os médicos pelo Brasil é uma escolha arriscada, até porque, sem novas vagas nos próximos anos o êxodo pode ser no sentido das capitais e grande centros. Talvez, a solução salomônica seja deixar que os cursos já propostos sejam analisados usando critérios razoáveis. Depois, quando os cursos verdadeiramente bons estiverem autorizados, o projeto de crescimento dirigido talvez faça mais sentido e o prazo possa ser sensivelmente reduzido para que os cidadãos brasileiros possam desfrutar uma saúde sem tetos.
Curso de imersão | São Paulo | 25 de outubro de 2023 | 10 às 17 horas
A Jacobs Consultoria e Ensino tem o prazer de apresentar nosso mais recente curso sobre a graduação em medicina no Brasil, abordando especialmente o novo edital do Programa Mais Médicos e as ações judiciais referentes a protocolos de autorização em andamento.
No período da manhã serão apresentadas e debatidas questões relacionadas aos processos judiciais, inclusive no STF, aos processos administrativos no MEC e aos pareceres do Conselho Nacional de Educação (CNE). À tarde o tema será o novo edital do Programa Mais Médicos, suas consequências e as oportunidades que surgem com a volta dos chamamentos públicos.
Comments