Por Edgar Jacobs, Juarez Monteiro e Guilherme Jacobs
A decisão de expandir e descentralizar os cursos de medicina por meio do Programa Mais Médicos, seguida pela imposição de uma moratória, e a recente limitação de vagas autorizadas por curso demonstram uma abordagem governamental que vai de encontro aos seus propósitos, oscilando entre a promoção da educação superior e a restrição desta mesma expansão.
Esta oscilação gera incertezas não apenas para as instituições de ensino, mas também para a sociedade em geral, que aguarda a resolução desse cenário por aproximadamente 4 anos. Essa incongruência tem, como pano de fundo, a aversão do MEC a expansão dos cursos de graduação em medicina. Uma repulsa injustificada e sem sentido.
Por que os argumentos contra a expansão são frágeis?
É difícil encontrar fundamento para dizer que a disponibilidade maior de recursos humanos qualificados seja um problema para a saúde e não há como dizer que essas restrições impostas pelo MEC contribuem para descentralizar a oferta profissional ou para melhorar o Sistema Único de Saúde. Quanto menos médicos, maior será a remuneração em grandes centros e em hospitais particulares, gerando para o SUS e as pequenas cidades um problema real.
Paralelamente, mais médicos no mercado de trabalho podem até significar uma menor remuneração média para a classe. Esse é um problema, que afeta todas as profissões em ambiente de concorrência, mas é uma questão que não pode ser resolvida com a restrição de vagas em cursos superiores.
A recente criação de um piso para enfermagem demonstra que existem outros caminhos. Essa também é a opção feita na LDB, no Art. 67, em relação aos professores da educação básica. Nos dois casos, para preservar minimamente a remuneração das categorias, ninguém cogitou proibir cursos ou limitá-los quanto a forma de abertura ou número de vagas.
Além disso, não há uma correlação inversa entre o número de vagas ofertadas e a qualidade dos profissionais. Se cada novo curso é avaliado minunciosamente pelo MEC e recebe sua chancela antes de começar a funcionar, nenhum órgão ou entidade de classe poderia dizer que os cursos não têm qualidade sem questionar todo o sistema.
Portanto, nem mesmo o discurso leigo de que o aumento da oferta de vagas de medicina criaria um risco em relação à qualidade dos profissionais pode ser usado como um argumento legítimo para barrar a expansão dos cursos.
Mais uma restrição que o MEC defende perante o STF.
Essa análise serve de base para discutir o último obstáculo criado pelo MEC em relação à abertura de cursos: a limitação do número de vagas. Este é o tema da mais recente petição da AGU juntada nas ADC 81 e ADI 7187, no Supremo Tribunal.
Não bastasse todo o problema já mencionado para o sistema de saúde e as distorções concorrenciais na educação superior, a restrição de vagas cria ainda o risco de desperdício de recursos de saúde disponíveis no território nacional, bem como a perda de investimentos já feitos pelas Instituições de Ensino que, comprovadamente, possuem material humano e estrutural para realizar uma oferta mais ampla que a estabelecida como limite.
A respeito desta restrição, que já abordamos em artigo, é preciso uma explicação mais detalhada. Nenhum curso superior tem número de vagas pré-definida. Esse número é definido caso a caso, a partir da disponibilidade de recursos de saúde na região e do projeto pedagógico, que equaliza o número de docentes e a infraestrutura proporcional ao número de vagas requeridas. Contudo, no caso dos cursos de medicina que devem ser analisados por força de decisão do STF, o MEC deixou de lado o contexto e determinou, por meio da Portaria 531/2023, que somente serão autorizados cursos iniciados por medidas judiciais com até 60 vagas.
Esse é um erro grave, que se escora em um número quase cabalístico.
Mínimo ou máximo?
O número de vagas é controverso porque ele não foi criado como um limite máximo. Na verdade, ele é fruto de uma contradição entre o que alega a AGU e o que afirmou o próprio MEC, na primeira vez que usou as 60 vagas. A sequência de citações ilustra essa incongruência:
Nota Técnica Conjunta nº 3/2023/DPR/SERES/SERES, de 02.10.2023, que fundamenta o Edital 01/2023 (Mais Médicos): “3.4.11. Uma boa referência para isso é a distribuição recente de coortes para cursos privados de graduação em Medicina no país: de acordo com o Censo da Educação Superior de 2021, a média de estudantes por ingresso em faculdade privada no Brasil naquele ano foi de 92, a mediana foi de 76 e a menor coorte observada tinha 53 discentes; desta forma, foi definido que 60 seria o tamanho mínimo para a viabilidade econômica de abertura de novos cursos de graduação em Medicina”. (grifo nosso)
Nota Técnica nº 22/2023/GAB/SERES/SERES, de 03.10.2023, também relativa ao Edital 01/2023 (Mais Médicos): “10.15. A segunda decisão foi estabelecer um quantitativo fixo de vagas para os novos cursos. A preocupação visava assegurar um quantitativo mínimo para a instalação viável de um novo curso privado e, ao mesmo tempo, uma uniformidade possibilitadora da comparabilidade entre as propostas. Chegou-se ao número de 60 vagas como critério para guiar essa distribuição, definindo-se, portanto, que os novos cursos resultantes do chamamento disporiam desse exato número de vagas autorizadas.” (grifo nosso)
Petição da AGU no STF, em 31.01.2024: “Na Nota Técnica nº 22/2023/GAB/SERES/SERES (em anexo), que apresenta motivação para o Edital de Chamamento Público nº 1/2023, a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior expôs, ainda, que a quantidade máxima de 60 (sessenta) vagas por novo curso de medicina foi estabelecida com o intuito de viabilizar a análise comparativa entre as propostas, o que não obsta sua ulterior ampliação…” (grifo nosso)
O histórico acima demonstra que, desde o início, os estudos sobre vagas buscaram estipular um “tamanho mínimo para a viabilidade econômica de abertura de novos cursos de graduação em Medicina” ou um “quantitativo mínimo para a instalação viável”. Porém, a petição da AGU se refere às mesmas 60 vagas como o “quantidade máxima” por curso.
Nesse caso há um erro nítido, pois o que as notas técnicas do MEC classificaram há três meses como mínimo viável não deveria ser tratado agora como o limite máximo de vagas.
Uma escolha técnica?
Dizer que o fato de o quantitativo ter sido criado para comparar propostas não obsta sua “ulterior aplicação” é um sofisma terrível. Escolhas técnicas, como um quantitativo de vagas, são determinadas a partir de objetivos e quando a finalidade da Administração Pública muda as escolhas anteriores tornam-se inaplicáveis.
Juridicamente, como afirma a Lei 9.784/1999, a Administração Pública Federal deve prezar pela “adequação entre meios e fins” e pelo atendimento do princípio da finalidade. Além disso, na prática, não é difícil perceber que um número de vagas criado para ser um mínimo viável e um parâmetro de comparação em licitação, não deve ser usado para criar um patamar máximo para cursos que serão analisados individualmente por meio de regulação. O que ocorre, neste caso, nada mais é do que o uso de parâmetro único para duas medidas completamente distintas, gerando o desequilíbrio aqui exposto.
Na petição da AGU, já citada como fonte dos erros acima, constam ainda números absurdos, que induzem a uma confusão entre número de possíveis vagas em cursos e número de profissionais formados. Por exemplo, a AGU usa a densidade médica, calculada pelo número de profissionais formados, para tentar justificar a restrição de vagas iniciais nos cursos. Isso é um erro, não só porque os dados são realmente diferentes, mas também porque existe uma defasagem de no mínimo 6 anos entre a oferta da vaga e a eventual formatura de um profissional.
Esses três pontos demonstram que a projeção de vagas futuras a serem ofertadas não é um argumento verdadeiramente técnico. Mas este não é o único problema.
Como dito acima, a eleição desse número-limite despreza a eventual existência de uma disponibilidade maior de recursos de saúde. Nada deveria justificar, por exemplo, a abertura de apenas 60 vagas de medicina em uma cidade que ofereça mais de 1000 leitos de saúde para a prática dos estudantes. Em um caso assim, a escolha de um número padrão infringe também o princípio da proporcionalidade e não adere a nenhum outro valor jurídico. Não tem base nem mesmo em isonomia, pois igualar pessoas ou situações diferentes não é medida isonômica. Dessa forma, mesmo que o número fosse tecnicamente correto, a padronização não seria justa, pois não é proporcional nem atente ao princípio da igualdade.
Enfim, há uma longa lista de restrições ilegais cercando o caso dos cursos de medicina. Provavelmente, a melhor solução seria validar a abertura de cursos por meio da livre iniciativa seguida de regulação, como ocorre em todo o ensino superior. Mas como o STF já mostrou inclinação — muito bem fundamentada, também — por proibir novos cursos, talvez a atenção deva se voltar para impedir, reprimir fortemente, as limitações ilegais que o MEC tenta impor aos processos de autorização em andamento.
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