Duas normas recentes do Ministério da Educação geraram muita discussão no meio jus-educacional. São elas a Portaria 279, da SERES/MEC e a Portaria 783, do próprio MEC.
As duas normas garantem vigência ao princípio constitucional da duração razoável dos processos, bem como ao direito das pessoas terem conhecimento dos prazos máximos e pedirem aprovação tácita de atos de liberação de atividades econômicas, quando superado esse prazo.
A norma constitucional foi inserida por emenda em 2004, a Lei de Liberdade Econômica vigora desde abril de 2019, quando foi divulgada, ainda na forma de medida provisória. Contudo, só no final setembro de 2020 o MEC cumpriu sua parte nesta mudança, divulgando prazos máximos por meio das portarias já citadas.
Toda a comunidade acadêmica criou boas expectativas, pois é notório que o Ministério da Educação possui muitos processos atrasados e alguns simplesmente travados, como é o caso dos cursos EAD em Direito.
Acontece que, dias depois das normas, o MEC fez um comunicado mediante "nota explicativa" para afirmar que: "...apenas os processos protocolados a partir de 1º de setembro se enquadram na contagem dos prazos previstos na Portaria nº 279, publicada em 30 de setembro de 2020". Por certo, o órgão imagina que essa interpretação também se aplica a Portaria 783/2020, que é extremamente semelhante e só se diferencia pelos tipos de processo que atinge e por quem a assina.
Entendemos, porém, que tal afirmativa está incorreta, especialmente por três motivos:
As portarias apenas regulam um direito que já estava previsto na Constituição e na Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2020;
As normas em discussão são omissas quanto ao início do fato gerador do direito;
O Poder Judiciário já aplicou a regra de autorização tácita antes mesmo do início da vigência da Lei e do Decreto que a regula.
Quanto ao primeiro argumento é pertinente dizer que as portarias não criam o Direito. A noção de que as pessoas - Administrados - têm direito de serem atendidas em prazo razoável na Administração Pública é antiga da literatura especializada e até mesmo nas normas. A garantia de julgamento em prazo razoável estava prevista expressamente na Constituição de 1824 (Art. 179, VII, referindo-se a processos criminais), depois disso, era deduzida da própria noção de "devido processo legal" e, em 2004, voltou ao texto constitucional (Art. 5º, LXXVIII).
Modernamente, nas leis, foi o direito destacado na Lei de Processo Administrativo Federal (Lei 9.784/1999, Art. 49) e, 20 anos depois, na Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) e no Decreto 10.178/2019, que a regula.
Portanto, é preciso deixar claro que não se trata de discussão sobre direito novo, recém criado. Trata-se, isso sim, de um direito que demorou a ser detalhadamente regulamentado, com definição de prazos e efeitos.
Nesse contexto, em que as portarias nada mais são do que uma regulação de prazos e efeitos, não há motivo para não aplicar o direito aos fatos que ocorreram - ou deixaram de ocorrer - entre a data da criação do direito e a atrasadíssima norma que define prazos e consequências. Na realidade, comparando-se as Portarias aos calendários divulgados nos últimos anos, observa-se que os prazos descritos agora não são sequer uma inovação. Por isso, não há nenhuma mudança relevante nas Portarias 279 e 783 que as torne normas constitutivas de direitos.
De fato, seria irônico que a aplicação da regra que visa impedir atrasos duradouros da Administração Pública só entrasse em vigor quando o Poder Público deixasse de postergar sua obrigação de definir prazos e de submeter-se as consequências dos seus atrasos. Tardasse 100 anos o MEC para fazer as Portarias, ou o Governo Federal para fazer o Decreto, todos os cidadãos poderiam continuar sendo lesados.
Em segundo lugar, aqui cabe lançarmos um olhar sobre as normas. Nas portarias está escrito:
"Os prazos fixados na forma do Anexo desta Portaria terão início de contagem a partir da data de apresentação de todos os elementos necessários à instrução do respectivo processo de requerimento..." (Art. 2º, Portaria 279/2020, grifamos)
"A contagem do prazo para decisão administrativa acerca de ato público de liberação de que trata esta Portaria inicia-se após a apresentação pelo requerente de todos os elementos necessários à conclusão da avaliação externa in loco..." (Art. 2º, da Portaria 783/2020, grifamos)
Nessas regras não há referência ao fato de quando teriam acontecido esses fatos iniciais, se antes, ou depois, da publicação da Portaria. Sendo assim, não há impedimento para a aplicação a casos pregressos.
Em defesa de sua explicação tardia, o MEC cita ainda o texto do Decreto 10.178/2020, que prevê: "O disposto no Capítulo III [APROVAÇÃO TÁCITA] se aplica somente aos requerimentos apresentados após a data de entrada em vigor deste Decreto" (Art. 20). Esta regra pode parecer clara, num primeiro vislumbre, mas uma análise mais acurada faz perceber que a mesma não deixa claro a qual requerimento se refere. Não diz se trata requerimento original em atraso ou do requerimento de aprovação tácita feito na forma do Art. 14 do Decreto.
Nossa opinião, diante do que já foi exposto acima, é de que se trata de referência ao requerimento de documento comprobatório de aprovação tácita.
Nesse ponto alguém poderia discutir se existem já requerimentos de aprovação tácita. Bem, entre a Medida Provisória de liberdade econômica e vigência do Decreto já se passaram aproximadamente 1 ano e 4 meses e podem existir, sim, requerimentos feitos com base nas novas regras.
Porém, o mais certo é que vários requerimentos para andamento de processos em atraso existem. Um deles, inclusive, foi objeto de análise pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que assim decidiu:
"...O agravante está há bastante tempo aguardando referida autorização, sem que haja motivo plausível para a demora apresentada pelo MEC em realizar as avaliações, tanto na infraestrutura da IES, quanto na parte de gestão, política de pessoal, de ensino de graduação, pós-graduação, pesquisa e extensão. É inegável o investimento realizado, bem como a expectativa criada em torno da implantação e funcionamento do Curso de Medicina do XXXXXXX na cidade de XXXXXX, assim como o processo administrativo com o pedido de autorização para funcionamento, que foi deflagrado e até o momento está inconcluso no Ministério da Educação, gerando prejuízos não só à instituição de ensino, mas a toda a comunidade. Diante da plausibilidade do direito invocado pelo agravante, entendo cabível a concessão, em parte, da antecipação de tutela pretendida. Ante o exposto, DEFIRO, EM PARTE, A ANTECIPAÇÃO DA TUTELA RECURSAL, para determinar que o Ministério da Educação, no prazo de 60 (sessenta) dias, conclua o processo administrativo de autorização de instalação e funcionamento do Curso de Medicina na cidade de XXXXXXXXX, pelo XXXXXXXXX, ficando consignado que, após o decurso desse prazo, será considerado tacitamente autorizado o funcionamento do Curso, restando claro que eventuais prejuízos ocorridos em virtude da autorização tácita serão de responsabilidade das autoridades administrativas que se omitiram na análise do pedido no prazo legalmente fixado. […]" (TRF-1 - AI: 10117946920194010000, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS AUGUSTO PIRES BRANDÃO, Data de Julgamento: 15/10/2019, Data de Publicação: 15/10/2019, grifamos)
Como visto acima, o Poder Judiciário aplicou a regra de aprovação tácita a um processo antigo - iniciado em 2015, conforme consta dos autos - demonstrando que o direito ao prazo razoável não é novidade e não pode ser tratado "a partir de agora".
O problema é antigo e o responsável é a Administração Pública, por isso parece ser não apenas ilógico e ilegal aplicar as regras a partir de agora, mas também injusto e favorável a quem vinha sendo omisso.
Portanto, diante das normas com redação pouco clara, o MEC deveria trazer a certeza de que pretende preservar os direitos dos Administrados afetados, não a incerteza indicando que pretende se beneficiar de mais esta demora, apagando o passado o órgão certamente não gerará confiança quanto a seus atos futuros.
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