O Supremo Tribunal Federal reconheceu em junho de 2024, na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 81-DF (ADC 81-DF), a importância dos cursos de medicina que foram abertos ou tramitaram no período de moratória imposta pelo Ministério da Educação. Durante 5 anos a iniciativa das Instituições e a firmeza do Poder Judiciário supriram a falta da política pública do Mais Médicos, tristemente bloqueada sob o argumento de que deveriam ser feitos estudos para aprimorar a educação médica.
Mas depois da derrota no STF — derrota não da política pública, mas da estranha omissão União — o MEC tomou atitudes nitidamente voltadas a travar os novos cursos ou a tentar limitar-lhes o funcionamento.
Um exemplo diz respeito ao número de vagas que podem ser autorizadas. Para as graduações iniciadas a partir de decisões judiciais, aquelas validadas pela decisão do STF, a regra, a era baseada em estudos validados na visita in loco e limitada pela estrutura do projeto avaliado. Mas no final de 2023 foi substituída pela limitação genérica de 60 vagas. Antes, os cursos poderiam ser aprovados para 100 alunos ou mais, porque têm seu planejamento pedagógico e financeiro baseados nesse volume. Agora, o MEC quer limitá-los a um número padrão, que não respeita a realidade regional e a infraestrutura disponível.
O argumento seria criar uma isonomia em face dos cursos do Edital 01/023, que abriu um novo chamamento público para abertura de cursos. Mas o próprio edital é prova do tratamento desigual. Nos 5 chamamentos anteriores os cursos foram aprovados para 50 alunos, a partir de 2023, este número subiu para 60, representando um aumento de 20%. Não bastasse isso, o novo edital para unidades hospitalares, Edital 05/2024, prevê um número de 80 a 100 ingressantes anuais para cada projeto aprovado.
Na prática, não há tratamento igual e nem poderia existir. Nos chamamentos, aprova-se um projeto ainda não implantado e como existe o montante de vagas previsto no edital, as instituições de ensino usam o padrão imposto para estruturar seu projeto. Enquanto isso, no caso dos cursos que foram pré-concebidos pela iniciativa privada e receberam visita para avaliação, é mais razoável a atribuição de vagas conforme a realidade constatada. Portanto, projetos feitos para os editais e cursos protocolados no sistema do MEC são propostas diferentes que, isonomicamente, têm de ser abordados de forma desigual.
Neste caso, a norma que cria essa igualdade falseada é a Portaria SERES/MEC 531/2023. Uma portaria supostamente feita para regulamentar a decisão da Suprema Corte e, em especial, a aplicação da Lei 12.871/2013 (Lei do Programa Mais Médicos), aos projetos de cursos judicializados pendentes.
É esta Portaria, que no Art. 8º, § 9º, estabelece o limite máximo de 60 vagas para os novos cursos, produzindo uma restrição sem par na Lei 12.871/2013.
Outro desvirtuamento do poder regulamentar está nítido no Art. 2º, com reflexos nos Arts. 4º e 5º. Trata-se da mudança do objeto de análise, da necessidade social. Para a Lei do Mais Médicos, o que importa é analisar a necessidade social da região de saúde, mas para a Portaria SERES/MEC 531, o que deve ser analisado é a cidade-sede do curso requerido, apenas.
O efeito dessa mudança é devastador. Regiões de saúde nas quais existem muitos municípios pequenos e médios que demandam mais serviços médicos passaram a ser avaliadas por uma de suas cidades. E a cidade avaliada é, normalmente, a mais bem equipada e com mais recursos, escolhida justamente por ter mais condições de disponibilizar campos de prática para os cursos novos. Assim, o resultado da avaliação isolada dos municípios é a errônea percepção de que não há necessidade social e o MEC, a partir da Portaria SERES/MEC 531, usa isso para indeferir o pedido de abertura de medicina.
Prova de que essa é uma escolha tendenciosa, é o próprio edital de chamamento de 2023. Para ele, a seleção dos municípios teve por base a necessidade da região de saúde. Isso mesmo, optou-se pela situação inversa ao que consta na Portaria de 2023!
Em resumo, ao contrário do que foi feito no caso das vagas, no qual a Portaria SERES/MEC criou uma limitação por acréscimo indevido ao texto legal, nesta segunda distorção a norma do MEC afrontou o texto da Lei, substituindo as regiões de saúde pelo município-sede.
Esses são somente dois dos problemas da Portaria, que têm mais normas claramente voltadas a criar novas dificuldades para as Instituições de Ensino cujos projetos foram resguardados pelo STF.
O Judiciário já está atento ao problema.
A ilegalidade deste tipo de ato normativo não foi negligenciada pela Justiça Federal; sobre a primeira norma, a Portaria SERES/MEC 397/2023, já havia decisão no sentido de que:
(…) é lógico concluir que ao garantir “o seguimento dos processos administrativos pendentes, previstos na Lei 10.861/2004, instaurados por força de decisão judicial, que ultrapassaram a fase inicial de análise documental” a ADC 81 também garantiu, por força do princípio tempus regit actum, que o fluxo e a análise desses processos observassem as normas vigentes ao tempo da sua inauguração. Ademais, não tendo sido a decisão condicionada a evento futuro, fático ou normativo, prescindia ela de regulamentação, mormente quando tal regulamentação, alterando o contexto legal existente ao tempo da decisão, vier esvaziar o escopo do julgado. Destarte, não se afigura lícita a adoção da novel Portaria SERES 397/23 na última e mais relevante fase do procedimento administrativo inaugurado sob norma anterior, a qual não só foi determinante na tomada de decisão da IES, como também norteou todo o projeto por ela apresentado, que bem por isso, não pode ser julgado sob uma nova e diferente perspectiva normativa. (…) (JFMG. Decisão publicada em 14/11/2023, grifamos)
A respeito da norma atual, a Portaria SERES/MEC 531/2023, foi decidido que:
(…) Nota-se que, de fato, por exemplo, o artigo 8° da Portaria SERES/MEC 531/2023, traz exigências e obrigações não veiculadas no artigo 3° e seus parágrafos da sobredita lei que institui o “Programa Mais Médicos”. (…) Com efeito, na parte que a Portaria desborda de sua natureza e cria obrigações não contempladas na Lei, sua aplicação deve ser expurgada. Ademais, ainda que assim não fosse, a aplicação destes instrumentos normativos deve ser limitada a situações que se apresentem a partir de sua edição, visto que trazem exigências e condições não contempladas nas normas anteriores e pela qual a autora pautou sua organização e investimentos. (…) (JFSP. Decisão de 25 de julho de 2024, grifamos)
Essas decisões mostram que a Justiça Federal se preocupa com as normas ilegais criadas para travar os processos que têm seguimento a partir da decisão do STF. Além de verificar sua incompatibilidade com a Lei 12.871/2013, os(as) magistrados(as) também se fixam na aplicação retroativa das normas, fato que as torna ainda mais injustas.
Decisões similares se multiplicam, assim como, reações estranhas. Por exemplo, a Associação que propôs a ADC 81-DF já se postou ao lado da União e da Portaria SERES/MEC 531/2023 em outro caso concreto. Se essa intervenção atípica da Associação persistir, amplificará o debate sobre o que deveria ser um direito garantido para todas as instituições, inclusive, seus membros.
Portanto, está sendo travada mais uma batalha judicial que poderia ser evitada. Mais um capítulo da judicialização que alguns atribuem aos advogados, como se culpassem um médico que tratam de uma doença. Mas a verdade é que, se a Lei do Programa Mais Médicos e a decisão do STF que a aplica fossem respeitadas, nada disso precisaria ocorrer. Só não vê quem não quer.
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