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O que está por trás da violência contra as escolas, professores e estudantes; e como enfrentá-la

Uma espécie de violência periódica que ocorre nas escolas dos Estados Unidos da América começou a acontecer também no Brasil desde o início dos anos 2000; são ataques violentos, realizados por estudantes, com ou sem armas de fogo, que deixam mortes e, claro, grande trauma e um cenário de muita insegurança na rotina da comunidade escolar.


De olho nesta absurda “violência contra as escolas” ou “às escolas” (e não “violência escolar”, pois o alvo da violência é a escola e a comunidade escolar), um importante grupo de professores e pesquisadores produziu um relatório para, depois de entender o fenômeno e suas causas, mostrar como os ataques estão relacionados com um contexto social específico, com a falta de controle e/ou criminalização dos discursos e práticas de ódio, bem como de sua difusão através de meios digitais. O trabalho também foi realizado com o intuito de fornecer estratégias de ação ao novo governo federal.


Ataques no Brasil


Antes dos anos 2000 não havia registro de ataques violentos a escolas no país, mas hoje, em 2023, já contabilizamos 16 ataques, 35 mortes e 72 feridos. Na grande maioria dos casos as agressões foram associadas ao bullying e situações contínuas de exposição a violência, como negligências familiares, autoritarismo parental e conteúdo disseminado em redes sociais e aplicativos de trocas de mensagem.


Os alvos de cooptação pelo discurso violento são majoritariamente adolescentes brancos e heterossexuais e o ódio às mulheres exerce um papel importante no processo. O relatório menciona que `mulheres são alvos frequentes de atiradores em massa´ e que, dentre os meios e métodos de cooptação, é corrente o ´uso de humor; uso de estética e linguagem violentas como a linguagem da machosfera; trollagem; uso de jogos online como Roblox, Fortnite, Minecraft´. O uso de imagens de ataques e compartilhamento de manifestos de atiradores como método de propaganda também é comum.


Aparentemente, inserir artefatos de segurança e agentes armados no ambiente escolar não modificaria a situação; os especialistas mostram que é preciso que os órgãos de inteligência ligados às forças de segurança monitorem sites, plataformas e fóruns anônimos e sempre mantenham canal de comunicação direto com as escolas. Enquanto isto, dentro das instituições de ensino, educadores devem conseguir identificar alterações de comportamento dos jovens, como interesse incomum por assuntos violentos e atitudes violentas, recusa de falar com professoras e gestoras mulheres, agressividade e uso de expressões discriminatórias de qualquer tipo e exaltação a ataques em ambientes educacionais ou religiosos.


Em nossas publicações temos falado bastante sobre ser necessário que a educação crítica da mídia permeie os variados componentes curriculares desde as séries iniciais do Ensino Fundamental até o Ensino Médio. Esta é uma conclusão também do estudo liderado pelo professor Daniel Cara. É dentro deste trabalho que o estudante deve ser estimulado a entender a ciência, combatendo sempre o negacionismo científico, especialmente no que se refere às Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Já se sabe hoje – vale ressaltar – que as tendências de ascensão da negação do holocausto e dos diferentes tipos de genocídios ocorridos e do revisionismo histórico baseado em deturpação de fatos e fenômenos históricos vêm trazendo força ao discurso de ódio.


Se a escola não tiver um papel na educação crítica midiática e tecnológica dos estudantes será difícil vencer a desinformação.


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Ações do Estado


No relatório mencionado é relatado que grupos extremistas lideram células que cooptam adolescentes para ataques. Neste ponto precisamos focar em dois tópicos: o Estado precisa treinar agentes e focar em ações de inteligência e de monitoramento que possam encontrar estes grupos a tempo. Eles têm um modus operandi próprio, usam símbolos e iconografia extremista, mas também estão em constante evolução tecnológica. Os agentes públicos precisam acompanhar esta evolução e entender a linguagem do ódio.


Outro tópico é que as lideranças destes grupos extremistas, responsáveis pelo recrutamento e instrumentalização de adolescentes e jovens para a prática de ataques, devem ser identificados e punidos. É um tipo de delito que não pode ser entendido como um crime de menor importância ou como exercício de “liberdade de expressão”.


Uma sugestão do grupo de trabalho que gerou o relatório sobre o qual escrevemos é a modificação da lei nº 7.716/1989 para definir como crime qualificado a conduta de recrutar crianças e adolescentes para comunidades e células nazistas, neonazistas e outros grupos extremistas, bem como a conduta de aliciar, autorizar, admitir, permitir a permanência de crianças e adolescentes em clubes de tiro, monitorando também espaços e clubes de “air-soft” e paintball onde crianças e adultos convivem sem a devida supervisão das mães, pais e responsáveis.


Aumentar pena para crimes cuja motivação ou o critério de escolha da vítima apresente elementos supremacistas e incluir agravante genérica, de caráter subsidiário, para os crimes em geral, onde se identificar a supremacia, a misoginia, o capacitismo e o racismo como motivação do crime ou como critério de seleção da vítima também foi sugerido.


Instituições de ensino como alvo


A violência atinge as escolas porque jovens cooptados normalmente têm um sentimento de vingança exacerbado em relação à comunidade escolar, por alguma coisa que lhes trouxe sofrimento dentro daquele ambiente e porque as escolas têm alto impacto midiático, servindo de estratégia de propaganda do extremismo. Ou seja, a opção por invadir uma escola não é mera coincidência ou fato aleatório.


É um crime que pode ser definido como organizado e planejado e é corriqueiro que as motivações do agressor estejam relacionadas ao sentimento de alienação social, raiva e vingança, com motivações de ódio às maiorias minorizadas e aproximação ideológica a teorias nazistas e fascistas.


A internet


De acordo com o relatório, o processo de cooptação pelos criminosos se dá por meio de interações virtuais em que o jovem fica exposto com frequência ao conteúdo extremista difundido em aplicativos de mensagem como Telegram, Whatsapp, Discord, chats de jogos, fóruns de discussão e redes sociais. Os jovens também compartilham o material entre amigos e colegas e se tornam agentes no processo.


O conteúdo desses grupos promove uma agenda ´política moralmente regressiva, especialmente (mas não apenas) orientada a conter ou anular avanços e transformações em relação a gênero, sexo e sexualidade, além de reafirmar disposições tradicionalistas, pontos doutrinais dogmáticos e princípios religiosos “não negociáveis´.


É curioso que o fenômeno não é exclusivo de nenhuma parte do mundo e para entende-lo é preciso levar em consideração o que fundamenta fortemente a guerra ideológica em prol do racismo contra a população negra e indígena, o machismo, o discurso de ódio contra pessoas LGBTQI+, a misoginia, e a chamada “ideologia de gênero”,


“um neologismo que cumpre o papel de um artefato retórico e persuasivo, em torno do qual foi possível reorganizar o discurso político e desencadear novas estratégias de mobilização e intervenção”. (trecho do relatório citado)

Como se dá a cooptação pelos grupos extremistas


As escolas e famílias precisam conhecer a forma pela qual os criminosos cooptam crianças e adolescentes para os crimes de ódio, que podem acontecer em várias intensidades:


  • O uso do humor, com memes, por exemplo, nazistas/fascistas e com discurso de ódio "irônicos", tem a intenção de dessensibilizar e relativizar e normalizar as violências.

  • O uso de estética e linguagem violentas como a linguagem da chamada ´machosfera´ abrange youtubers, bloggers, podcasters e fóruns de discussão. Nestes ambientes há o uso de termos misóginos e racistas como regra.

  • O uso de trollagens com o intuito de provocar discussões. O relatório cita o caso de quando os usuários do 4chan começaram a dizer no fórum que o sinal de ok feito com as mãos, na realidade, seria a sigla "WP" (White Power). Era uma inverdade, mas pessoas de fora da comunidade espalharam a pegadinha e hoje o símbolo de ok é usado como "apito de cachorro" por grupos supremacistas brancos.

  • O uso de jogos online como Roblox, Fortnite, Minecraft, os mais acessados para a diversão e construção de vínculos sociais. Depois o jovem cooptado migra para grupos de Telegram ou WhatsApp, dificultando o monitoramento.


O que são os chans


Chan é o diminutivo da palavra “channel” e os primeiros surgiram no Japão, nos anos 2000; em pouco tempo o conceito se espalhou para diversos países, incluindo o Brasil.


Eles são fóruns anônimos, ou seja, os usuários podem postar mensagens sem se identificar e, originalmente, foram criados para discussão de tópicos sobre jogos, animes etc. Nos chans mais populares, são proibidos conteúdos que violam as leis. No entanto, as más intenções também encontraram espaço nos chans, e quando eles estão abertos em ambientes da deep ou dark web é ainda mais fácil preservar o anonimato. Normalmente é quando pessoas com um perfil obtuso, em especial homens, muitos dos quais jovens com dificuldades de relacionamento, encontram terreno para alimentar o ódio pelas mulheres, inclusive com discursos que incentivam estupros, agressões e até assassinatos.


Observe que, em 2012, a Polícia Federal mostrou que o atirador de Realengo obteve incentivo em um desses chans e – não à toa – apesar dele ter atirado em meninos, as meninas eram o alvo principal.


A misoginia dos chans da dark web é bastante grave, mas as mulheres não são o único alvo. Negros, homossexuais, judeus, imigrantes, nordestinos (aqui no Brasil) também são vítimas em discursos de ódio nestes espaços. Discursos que já se refletiram em ações.


Nestes chans há o uso de imagens de ataques e compartilhamento de manifestos de atiradores como método de propaganda, de forma a inspirar outros adolescentes a cometer ataques. Imagens difundidas pela mídia ou pelos criminosos viram propaganda da mesma maneira. Também ocorre o processo de "santificação" dos agressores nos canais virtuais e competição para ver quem consegue mais atenção na imprensa. Os que têm tendências suicidas são encorajados a agir, mas só depois de cometer alguma barbárie contra um grupo específico.


No Brasil tivemos um caso de um chan bastante perigoso, o "Dogolachan", fundado em 2013. Ele foi, nos termos do relatório do professor Daniel Cara, o celeiro de atos extremistas violentos e maior espaço de difusão de conteúdo nazista, fascista e de ódio contra minorias no Brasil. Curiosamente funcionou na superfície da web até 2018; só a partir daí é que ele migrou para a deep web.


A cooptação dos jovens poucas vezes é feita para cometer massacres em escolas, mas, para serem aceitos pelo grupo, eles precisam cumprir ordens, como gravar vídeos caluniando mulheres. Como já dissemos, a misoginia quase sempre é uma porta de entrada para o recrutamento; por isto o cuidado em verificar se o jovem se recusa a falar com professoras e gestoras mulheres e/ou fala com elas em tom agressivo e com expressões pejorativas.


Interesse exacerbado em assuntos violentos, atitudes violentas (verbais ou físicas), capacitismo, racismo, LGBTQIA+fobia também merecem atenção.


Ações a serem desenvolvidas


O relatório conclui que são necessárias ações coordenadas de órgãos de inteligência ligados às forças de segurança, monitorando sites, redes sociais, comunicadores instantâneos e fóruns anônimos e eles devem manter canais de comunicação direto com as escolas e redes públicas de ensino. Caso existam motivos para preocupação, Conselho Tutelar, Polícia Civil, Ministério Público e Secretaria Municipal de Educação devem interferir, cada um na medida de sua responsabilidade, para acompanhar o caso e - inclusive - prestar apoio psicológico para a criança/adolescente.


A escola, por sua vez, deve ser espaço de liberdade, criação, criatividade e criticidade para funcionar à luz dos princípios constitucionais. Deve existir amplo debate sobre os malefícios da disseminação de notícias falsas e pós-verdades e o estudante precisa ser alertado da existência e a perspectiva do enfrentamento e da coibição do cyberbullying e de discursos de ódio em múltiplas instâncias da Internet.


A atuação conjunta entre corpo docente, pais e responsáveis, com estes tendo acesso a assistentes sociais, psiquiatras e psicólogos é imprescindível.


A propósito, a família também precisa receber orientações para detectar alterações comportamentais e ter responsabilidade de observar o conteúdo digital consumido por crianças e adolescentes, que vivenciam – em razão do momento de sua existência - uma fragilidade emocional própria e costumam buscar por três coisas: identidade, senso de comunidade e senso de propósito.


Também precisamos formar grupos de psicólogos especializados no atendimento à vítimas de tragédias e traumas; a entrada de uma pessoa armada em um ambiente escolar e toda a violência gerada acarreta um grande trauma para as vítimas, seus familiares e testemunhas.


Responsabilização


É necessário que exista a responsabilização das lideranças dos grupos extremistas, especialmente dos adultos responsáveis pelo recrutamento e instrumentalização de crianças e adolescentes para a prática dos ataques. Eles precisam ser identificados e punidos. Como já mencionado, nem tudo pode ser visto como crime de menor importância ou como exercício de “liberdade de expressão”.


Também, é preciso responsabilizar e punir as plataformas que abrigam conteúdos de incentivo à violência. O monitoramento deste tipo de interação permitiria identificar previamente a inclinação de adolescentes à prática de atos violentos. A família não consegue fazê-lo de forma plena, dizem os especialistas, enquanto as plataformas sim, com facilidade.


Por fim, é muito importante que os meios de comunicação conheçam e tenham consciência sobre possíveis efeitos indesejados e não antecipados sobre como indivíduos e comunidades são afetadas pela exposição à mídia violenta. Estudos demonstram que a exposição não moderada por fatores protetivos impacta na forma como os jovens percebem as armas de fogo, toleram a agressão e o bullying, entre outras dimensões.


Com o apoio de toda a sociedade há como desenvolver projetos efetivos e eficazes destinados à desvinculação dos grupos extremistas que fomentam o ódio e trazer luz aos jovens cooptados para que possam a se reintegrar à sociedade como pessoas funcionais, capazes de trabalhar e tecer relações sociais saudáveis em suas comunidades.


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