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Procon/MG erra ao propor descontos nas mensalidades escolares em tempos de COVID-19

Atualizado: 24 de abr. de 2020

Na nota técnica nº 01/2020 o Procon/MG decidiu orientar fornecedores e consumidores, "que as instituições privadas de educação básica, vinculadas ao Sistema de Ensino do Estado de Minas Gerais, devem":


a) conceder, aos seus consumidores, um desconto mínimo de 29,03% no valor da mensalidade de março, relativo aos dias em que não houve a prestação dos serviços, na forma contratada (23 a 31/03), devendo esse desconto ser concedido na mensalidade do mês de abril, caso a mensalidade de março já tenha sido quitada; b) enviar aos seus consumidores proposta de revisão contratual para vigorar durante o período de suspensão das atividades presenciais, "sendo que o fornecedor deverá considerar a planilha de cálculo apresentada no início do ano, com as despesas diárias previstas, e compará-las com os custos acrescidos e reduzidos no período de atividades não presenciais"; c) suspender o contrato de educação infantil até o término do período de isolamento social, face à impossibilidade de sua execução na forma não presencial; d) velar pela qualidade do ensino, bem como, preferencialmente, pela reposição das atividades escolares presenciais; e) considerar que a reposição integral de aulas presenciais "implicará na retomada dos valores contratados"; f) observar que no caso de opção do consumidor por rescindir o contrato nada poderá ser cobrado por se tratar de ato motivado por caso fortuito ou força maior (Lei nº 8.078/90, arts. 6º, V, e 46; Código Civil arts. 393 e 607).

O Sindicato das Escolas Particulares de MG, por sua vez, ao tomar conhecimento da recomendação, respondeu à nota com estranheza e espanto. E com toda razão.


A estranha nota emitida pelo MPMG, via Procon, negligenciou orientação da SENACON (órgão nacional de defesa do consumidor) e é nitidamente inconstitucional ao ofender princípios básicos das atividades econômicas, como a função social e a garantia constitucional da livre iniciativa


Além disso, a NT emitida pelo Procon/MG não considera a norma sobre mensalidades escolares e trata vagamente da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Por isso, deixa de observar que a dita "mensalidade" é, na verdade, um valor calculado para o semestre ou ano e que as instituições de ensino têm liberdade para definir as metodologias usadas na execução de seus projetos pedagógicos.


1. Sobre a falta de competência do Procon/MG e a nota técnica da SENACON


Como explicou o SinepMG, vamos nos lembrar que as escolas particulares são resguardadas pela livre iniciativa e pelas leis que tratam da cobrança da mensalidade escolar. Por mais que estejamos em uma situação de exceção à normalidade dos tempos pré pandemia e que possamos admitir uma maior intervenção estatal na economia, não há como encontrar soluções abstratas – como realizado pelo Procon/MG - sem uma análise profunda do mercado específico e a ponderação de suas consequências.


Neste ponto, é preciso esclarecer que a Senacon, Secretaria Nacional do Consumidor, já havia emitido a recomendação de que os consumidores evitassem o pedido de desconto nas mensalidades, pois as escolas fazem sua programação financeira anualmente.

“Diante do contexto imprevisível que todas as relações de consumo estão enfrentando, a Senacon recomenda que consumidores evitem o pedido de desconto de mensalidades a fim de não causar um desarranjo nas escolas que já fizeram sua programação anual, o que poderia até impactar o pagamento de salário de professores, aluguel, entre outros”.
(a recomendação) “se baseia na possibilidade da escola garantir a prestação de serviço educacional com qualidade equivalente ou semelhante àquela contratada inicialmente, ainda que de forma remota ou online. Não sendo possível esta alternativa, os alunos poderão receber aulas presenciais em período posterior, com a consequente modificação do calendário”. (Trecho da nota técnica do Senacon)

Segundo a Lei Federal 9.870/99, mencionada pelo Senacon, a contratação de serviços particulares de educação ocorre por anuidades ou semestralidades escolares. O valor anual ou semestral tem vigência por um ano e é dividido em 12 ou 6 parcelas mensais iguais.

“2.13 Nos dois casos, fica evidente que não é cabível a redução de valor das mensalidades, nem a postergação de seu pagamento. É preciso ter claro que as mensalidades escolares são um parcelamento definido em contrato, de modo a viabilizar uma prestação de serviço semestral ou anual. O pagamento poderia ocorrer em parcela única, ou em número reduzido de parcelas, mas essas opções tornariam mais difícil o pagamento pela maior parte das famílias.
2.14. Assim, opta-se por um pagamento parcelado, ao longo do semestre ou do ano, usualmente com periodicidade mensal. Essa questão é importante porque o pagamento corresponde a uma prestação de serviço que ocorrerá ao longo do ano. Não faz sentido, nessa lógica, abater das mensalidades uma eventual redução de custo em um momento específico em função da interrupção das aulas, pois elas terão que ser repostas em momento posterior e o custo ocorrerá de qualquer forma. (Trecho da nota técnica do Senacon)

Vale ressaltar que a competência do Senacon, órgão do Ministério da Justiça (MJ), é definida pelo art. 106 do CDC e, neste caso, suplanta a dos Procons estaduais, tendo sido a nota técnica acima proferida após solicitação formulada pelo Procon/SP sobre o tema.


Bom dizer que o referido artigo expressamente trata como competência da Secretaria do MJ:


a) receber, analisar, avaliar e encaminhar consultas, denúncias ou sugestões apresentadas por entidades representativas ou pessoas jurídicas de direito público ou privado;

b) prestar aos consumidores orientação permanente sobre seus direitos e garantias;

c) informar, conscientizar e motivar o consumidor através dos diferentes meios de comunicação. esta competência detalhada em lei deixa claro qual órgão atuar neste caso.

Ou seja, sequer cabia ao Procon/MG a emissão de referida nota; o órgão agiu – e isto é nítido – contrariando a recomendação do órgão competente para tal. Extrapolou sua competência e atribuições.


2. Força maior ou fato do príncipe?


Para além da questão da (in)competência do Procon/MG, cabe ainda dizer que a conjuntura é diferente da força maior, inclusive. Estamos diante de um autêntico fato do príncipe, uma modalidade de força maior que obriga o governo a arcar com eventuais perdas econômicas, tudo isso em prol da manutenção da saúde e vida dos alunos, docentes e funcionários das instituições, e, em cadeia, de todos os demais indivíduos da sociedade.


Duas normas estaduais proíbem os cursos presenciais (DELIBERAÇÃO DO COMITÊ EXTRAORDINÁRIO COVID-19 nº 8, de 19 de março de 2020 e nº 17, de 22 de março 2020) desde 19 de março em Minas Gerais, afirmando expressamente que:

Art. 2º – Ficam proibidos, para fins de enfrentamento da situação de emergência em saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus – COvID-19, nas áreas de que trata o parágrafo único do art . 1º: I – a realização de eventos e reuniões de qualquer natureza, de caráter público ou privado, incluí- das excursões e cursos presenciais com mais de trinta pessoas; Parágrafo único – A vedação de que trata o inciso II se estende a todo o território do Estado .

Além disso, o próprio estado de Minas Gerais suspendeu as aulas de sua rede pública de ensino no dia 20 de março (DELIBERAÇÃO DO COMITÊ EXTRAORDINÁRIO COVID-19 Nº 15, e 20 de março de 2020). Demonstrando que tinha controle da situação e, agindo bem, a nosso ver, tomou uma medida acertada: o isolamento social, este, sim, motivo da adaptação dos objetos dos contratos educacionais em Minas.


Em resumo, é o isolamento social - ato responsavelmente imposto pelo estado - e não a pandemia - caso fortuito ou força maior imposta pelas circunstâncias - que gera a necessidade de ensino a distância ou de suspensão total da oferta de atividades educacionais.


Dessa forma, deveria ser o estado responsabilizado por eventuais prejuízos. E mesmo que os prejuízos ainda não estejam configurados, tal situação, ao invés de autorizar à partes contratantes revisarem o contrato ou mesmo cancela-lo, autorizam, com certeza, a cobrança de ações efetivas do estado.


Apenas para exemplificar essa responsabilização estatal e não reduzi-la a pagamento de despesas contratuais, cabe usar a Medida Provisória 948/2020, que " .....". Nessa norma, o Poder Público assumiu sua responsabilidade pela decisão do isolamento social, por exemplo permitindo que:

Art. 2º Na hipótese de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem: I - a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados; II - a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou III - outro acordo a ser formalizado com o consumidor.[…]
Art. 3º O disposto no art. 2º se aplica a: I - prestadores de serviços turísticos e sociedades empresárias a que se refere o art. 21 da Lei nº 11.771, de 17 de setembro de 2008; e II - cinemas, teatros e plataformas digitais de vendas de ingressos pela internet. (grifamos)

Nesta norma federal foi criada uma obrigação facultativa para os prestadores de serviços (ver aqui interessante artigo sobre o tema) que dá grande apoio a setores muito necessitados, como cultura e turismo. Com a norma, ao contrário da devolução forçada, esboçada pelo Procon/MG, prestadores de serviços ganham a possibilidade de cumprir sua obrigação em outro momento ou forma, algo que seria pertinente também para os estabelecimentos de ensino.


Ora, ter normas assim para alguns mercados e deixar o setor educacional à mercê de notas técnicas tecnicamente questionáveis é, no mínimo, estranho. Não porque o setor cultural e de turismo não sejam importantes, nem porque o setor educacional gera, provavelmente, mais empregos, mas porque é preciso isonomia, tratamento similar, principalmente neste momento em que diversos lobbys devem estar sendo feitos para favorecer um setor ou categoria.

 

3. Revisão contratual, cancelamento de contrato ou boa-fé objetiva?


Imaginemos um cenário absurdo no qual: a) As instituições de ensino pudessem suspender o contrato de todos os docentes; b) o custo com o EAD fosse proibitivo; c) os estudantes fossem tratados apenas com os rigores do contrato e da Lei.


Seria considerada uma solução razoável se as instituições de ensino impusessem um novo preço e/ou cancelassem o contrato sem considerar que os estudantes esperam o cumprimento do semestre ou ano letivo?


Nossa resposta é NÃO!


As partes deveriam considerar que as obrigações são dinâmicas, tal como um processo que se desdobra no tempo e se sujeita às vicissitudes dos fatos. E deveriam agir para manter firme o contrato e para que os objetivos - aprender e ensino - sejam cumpridos mesmo sob novas circunstâncias. Ou seja, as partes deveriam agir com boa-fé objetiva. Essa é a interpretação contemporânea que deveria ser usada para contratos relacionais, de médio e longo prazo.


Portanto, juridicamente, hoje, vale mais o que diz a SENACON do que o que diz a nota "técnica", do Procon/MG.


A nota do órgão mineiro desconsidera o fato de que não há escolha por parte das escolas, que precisaram se reorganizar praticamente da noite para o dia, exigindo um trabalho hercúleo dos docentes e demais funcionários. E deixa de lado, ainda, que: a alteração de objeto foi autorizada e estimulada pelos órgãos gestores da educação; representa a melhor forma de tratar da saúde e segurança do consumidor (Art. 8º e 10, do CDC); e que educação a distância não necessariamente é mais barata que educação na modalidade presencial.


Na prática, as escolas, de acordo com as determinações do CEE, não estão sendo desincumbidas de suas obrigações; vão entregar o acertado quando do contrato firmado no ato da matrícula, tudo de acordo com o projeto pedagógico definido anteriormente, sendo que a continuação dos serviços já vem ocorrendo de forma remota em muitas escolas desde o início da suspensão, o que exigiu, a propósito, um preparo abrupto (e custoso) tanto operacional quanto de pessoal.


A logística dessa mudança inesperada do presencial para o EAD – que definitivamente não ocorreu por vontade das instituições, mas por uma determinação do estado em razão de uma questão de saúde pública mundial – não se realiza sem custos. Porém, é certo que existe um grande desconhecimento do processo que envolve a dinâmica do EAD. Desconhecimento e preconceito exalados da nota que presume que o ensino remoto - ou EAD, como nos parece tecnicamente correto dizer - possui custo bem mais baixo que o presencial.


A nota do Procon/MG, sem dar destaque, toca nesse assunto quando trata da planilha de custos da escolas, pois afirma: "o fornecedor deverá considerar a planilha de cálculo apresentada no início do ano, com as despesas diárias previstas, e compará-las com os custos acrescidos e reduzidos no período de atividades não presenciais" (recomendação "b").


Ora, será mesmo que o órgão considera custos acrescidos quando impõe devolução de valores sem considerar que entre os dias 23 e 31 de março as escolas estavam tentando treinar seus professores e contratando serviços de consultoria e infraestrutura para adequar-se a nova realidade? Será que considera planilha de custos quanto propõe cancelamentos sem cobrança de quaisquer valores? Quando trata com frieza da suspensão de contratos da educação infantil? 


Provavelmente, a ideia, sem base nem sentido, é que o EAD é mais barato e que as planilhas vão mostrar o lucro que as escolas têm nesse momento e como são capazes de arcar com os docentes por mais 2 ou 3 meses sem qualquer cobrança de multas ou apoio estatal.


Em paralelo, quanto a educação infantil, caberia estimular o cumprimento do contrato e, tal como no caso dos setores de cultura e turismo, repor ou trocar serviços em momento mais oportuno, afinal ninguém quer demissão de pessoas e fechamento de estabelecimentos que precisam da contrapartida prevista para 6 meses ou 1 ano de contrato.


Por derradeiro, ainda tratando do equilíbrio contratual, seria interessante questionar aspectos práticos:


  • seria difícil e prejudicial aos próprios consumidores repor as aulas e cobrar por essa reposição, conforme sugerido na recomendação "e", pois o custo do serviço, recalculado, provavelmente aumentaria em virtude de novos gastos (na área trabalhista, provavelmente por horas extra, cancelamento de férias e outras medidas);

  • o cancelamento, após dois meses de aulas e ainda sem avaliação derradeira, não permitiria que os estudos dos dois meses já passados fossem aproveitados, assim, os estudantes teria que pagar todo o semestre;

  • nem todos os alunos/pais teriam interesse em cancelar ou repor aulas no futuro, mas se um grande número fizesse isso agora seria impossível para as escolas cumprirem as obrigações com os demais.


Portanto, não apenas por questão de boa e contemporânea técnica, mas por razões práticas, é bem mais relevante enfatizar a necessidade de boa-fé objetiva das partes - de condutas no sentido de preservar e cumprir os contratos - que sugerir cancelamento ou revisão de forma genérica.



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